1 de abril de 2014

Paprika: O sono e o sonho

Há pouco menos de dois anos, teci aqui uma breve comparação entre Paprika, filme de animação de 2006 realizado por Satoshi Kon, com Inception, o heist movie de ficção científica realizado por Christopher Nolan e estreado em 2010. Uma comparação que, de resto, mantenho - Inception é um bom filme que no entanto se revela incapaz de levar as ideias que apresenta até às últimas consequências (simplificando em demasia os mecanismos de defesa do ego durante o sonho, por exemplo), enquanto Paprika explora essas consequências de uma forma ao mesmo tempo firmemente ancorada em temas e imagens tradicionais do anime e freudiana tanto no seu simbolismo como na sua irracionalidade. Mas talvez interesse regressar ao filme de Satoshi Kon e olhar com um pouco mais de atenção para os vários elementos que o constituem, da premissa ao enredo e às personagens - longe de quaisquer comparações (noutro dia, farei o mesmo exercício para Inception). 

Adaptando para anime o romance de ficção científica homónimo de Tasutaka Tsutsui, Satoshi Kon dedicou-se à exploração do tema dos sonhos através de uma premissa intrigante: num futuro próximo, ainda que indeterminado, foi inventada uma tecnologia capaz de monitorizar os sonhos dos seus utilizadores - e essa tecnologia, condensada num dispositivo portátil ainda inacabado conhecido internamente como "DC Mini", começa a ser utilizada de forma ilegal, ainda que benévola, pela Drª Atsuko Chiba para ajudar pacientes psiquiátricos. 


A primeira cena do filme, antes mesmo do genérico espantoso (e, em um ou dois momentos, reminescente de algumas imagens do primeiro filme de Kon, Perfect Blue), ilustra desde logo essa utilização: Atsuko utiliza o seu alter-ego de sonhos, Paprika, para analisar um sonho recorrente que tem perturbado o Detective Toshimi Konakawa, e cujo significado lhe escapa. 


Esta utilização por parte de Atsuko/Paprika é, para todos os efeitos, um segredo: apenas o Dr. Kosaku Tokita, o criador da tecnologia e do "DC Mini" (e, na prática, uma criança genial num corpo de um adulto), tem conhecimento das acções da sua colega. Mas quando um dispositivo desaparece, as vulnerabilidades de todo o sistema vêm ao de cima: com o aparelho, qualquer pessoa pode aceder aos sonhos de outra, o que poderá trazer consequências imprevisíveis. Que cedo se começam a manifestar, e de forma mais dramática do que Atsuko alguma vez imaginou possível.


Progressivamente, a realidade começa a misturar-se com os sonhos - uma estranha e alucinada parada de objectos animados e delírios consubstanciados irrompe de um lugar inesperado. Paprika vê-se perseguida - caçada - através de múltiplas realidades que se alternam entre o sonho puro e o sonho ficcional. Entre esses sonhos, irrompe a neurose de Konakawa. A fantasia de Tokita. O delírio de Shima. E um rosto conhecido no caos - prova de que o roubo do "DC Mini" terá sido uma inside job. Ou talvez não.


A animação magnífica de Satoshi Kon recria em formas perfeitas e coloridas tanto a realidade como os sonhos - e até a realidade que emerge dos sonhos, nas suas formas mais espantosas e grotescas, numa parada evocativa de outros conceitos, temas e símbolos da animação - japonesa, sobretudo, mas não só. De Peter Pan a Journey Into the West, de Dragonball a Neon Genesis Evangelion (com um final estilizado ao gosto dos subgéneros mecha e kaiju) - as referências são mais do que muitas, das mais evidentes às mais obscuras e fugazes, e é um deleite descobrir pequenos detalhes e segredos ao longo de vários visionamentos.


Com um carácter profundamente freudiano na forma como explora o tema dos sonhos e as psicoses, Paprika revela-se um filme complexo, aperfeiçoando o desvanecer de realidades que Satoshi Kon abordou pela primeira vez em Perfect Blue - e eleva a parada ao afastar-se do psicodrama original para construir uma história de detective alucinante e retorcida que, as espaços, torna impossível a distinção entre o real, o sonho e o pesadelo. Sem que o soubesse, Satoshi Kon teve em Paprika a sua derradeira longa-metragem - e ao vê-la, uma e duas vezes, ganha-se a exacta noção do que se perdeu com a sua morte tão prematura. 8.8/10

Paprika (2006)
Realizado por Satoshi Kon
Argumento de Satoshi Kon com base no romance homónimo de Yasutaka Tsutsui
Com Megumi Hayashibara, Tôru Furuya, Paul St. Peter, Daisuke Sakagushi e Kôichi Yamadera
90 minutos

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