18 de março de 2014

Total Recall: A persistência da memória

Nos onze anos decorridos entre 1987 e 1997, o realizador holandês Paul Verhoeven realizou três filmes de ficção científica que, não alcançando o estatuto de obras-primas de algumas obras do género suas contemporâneas, acabaram por se tornar em clássicos de culto da ficção científica cinematográfica e em entradas maiores na sua filmografia pessoal (a par, claro, do inevitável Basic Instinct). São, como é bom de ver, três filmes bastante diferentes nos temas abordados, nas narrativas exploradas, e mesmo nas suas origens (um é original, dois são adaptações de clássicos da ficção científica literária). Há entre eles, porém, uma certa homogeneidade na estética e no tom; e essa homogeneidade acaba por aproximá-los, dando forma a uma trilogia tão singular como relevante na ficção científica dos anos 80 e 90. O primeiro filme desta tríade foi Robocop, obra original de Verhoeven da qual aqui falarei em breve (ou assim espero); o último foi Starship Troopers, adaptado de forma muito livre (passe o eufemismo) do romance clássico de Robert A. Heinlein. E entre os dois, no ano de 1990, estreou Total Recall, levantado do conto We Can Remember It for You Wholesale que Philip K. Dick publicou em 1966 nas páginas da revista The Magazine of Fantasy & Science Fiction

Logo numa das primeiras cenas de Total Recall é possível encontrar um pouco do tom cínico, quase satírico, que viria a marcar Starship Troopers: quando o protagonista, Douglas Quaid (interpretado por Arnold Schwarzenegger) vê no noticiário matinal uma pela sobre a rebelião de mutantes num Marte explorado pela mega-corporação mineira de Vilos Cohaagen (Ronny Cox). A rebelião é prontamente esmagada pelas forças paramilitares de Cohaagen - with minimal use of force, ouve-se a jornalista dizer, entre o som de fogo real. 


Verhoeven, porém, revela uma maior compreensão das idiossincrasias da obra de Philip K. Dick do que outros realizadores que arriscaram adaptações da obra do autor norte-americano (como John Woo). O tom mais próximo da sátira mediática que marcaria o seu filme de 1997 está presente em Total Recall, mas em terceiro ou quarto plano; serve para dar alguma cor ao cenário e para fazer uma introdução inteligente a um plot point que será relevante mais à frente na narrativa - e nada mais. Debaixo da sua violência algo gráfica e da estética marcadamente verhoeveniana, encontramos em Total Recall um filme que explora com competência e sensibilidade as noções de fragmentação de identidade e de realidade, por via da manipulação de memórias e de papéis, que são tão caras a Philip K. Dick.


Total Recall transporta o espectador para Marte logo na primeira cena: um sonho do protagonista passado na superfície de Marte, acompanhado por uma mulher que não conhece - e que cedo se torna evidente não ser a sua mulher, Lori (Sharon Stone). Os sonhos de Marte atormentam Quaid há já alguns anos - quando, na verdade, nunca esteve no Planeta Vermelho. Para tentar lidar com a situação, acaba por recorrer à proposta de um anúncio de uma corporação, a Rekall Incorporated: a possibilidade de ter as memórias completas de umas férias de sonho em Marte, ao invés de empreender a viagem. E com um bónus: poderá visitar Marte na qualidade de agente secreto, numa ficção tornada realidade pela construção de memórias a pedido.


O processo de implantação das memórias, porém, corre mal, e Quaid vê-se envolvido numa conspiração que lhe demonstra toda a sua vida ser falsa, incluindo a sua mulher. Essa conspiração estende-se até Marte, e até ao próprio Cohaagen, e Quaid acaba por partir para Marte em busca não só da sua identidade, mas também de algo que explique a situação em que se encontra - mas quando a realidade que está a viver se começa a assemelhar de forma estranha ao sonho prometido pela Rekall, como distinguir a realidade da ficção?


Verhoeven joga bem com a dúvida constante - o argumento revela-se astuto, construído em redor de reviravoltas bem montadas a explorar as memórias verdadeiras e falsas (e o final consegue resolver todo o enredo sem fornecer uma resposta definitiva, bem ao estilo de Philip K. Dick). A chegada a Marte adensa a trama, colocando em jogo o movimento rebelde de Kuato (aludido no spot informativo inicial) e o próprio Coohagen - até ali, o rosto do vilão foi o seu principal capanga, Richter (numa excelente interpretação de Michael Ironside).


Mas onde Total Recall se transcende é na sua elaborada construção visual, que enriqueceu o enredo sólido com uma estética singular, tipicamente verhoeveniana na sua opção por efeitos práticos imaginativos e uma caracterização soberba. O resultado é sempre imaginativo e, a espaços, icónico. Imagens como o célebre scanner de armas com raio-X, o "Johnny-Cab", os mutantes grotescos e tão humanos de "Venusville" (qual red light district marciano), a prostituta com três seios, o disfarce a desmontar-se e as descompressões violentas na exposição à atmosfera de Marte persistem na cultura popular e deram um contributo inestimável para o (justíssimo) estatuto de culto que o filme alcançou.


Sendo um filme já dos anos 90, Total Recall ainda transporta alguma bagagem temática da década que o antecedeu - o destaque dado à opressão corporativa é disso exemplo. Os elementos tradicionais de Verhoeven estão lá todos - o princípio de sátira, as deixas algo camp, mas o filme ascende acima desses detalhes para explorar, numa fascinante construção visual que em momento algum abdica de um argumento sólido, uma trama típica de Philip K. Dick. É certo que Verhoeven poderá talvez ter tornado o filme mais violento do que o necessário (as histórias de Dick raramente o são, pelo menos em termos físicos), mas isso não retira mérito à qualidade da sua adaptação. 08/10

Total Recall (1990)
Realização de Paul Verhoeven
Argumento de Dan O'Bannon, Ronald Shusett, Jon Povill e Gary Goldman a partir do conto We Can Remember It for You Wholesale, de Philip K. Dick
Com Arnold Schwarzenegger, Rachel Ticotin, Sharon Stone, Michael Ironside, Ronny Cox, Marshall Bell e Mel Johnson, Jr.
113 minutos

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