25 de fevereiro de 2014

The Adjustment Team: Destino burocrático

Nenhum autor de ficção científica foi (é) tão adaptado ao cinema como Philip K. Dick. Entre contos e romances contam-se já doze adaptações das suas obras - algo que, se considerarmos a complexidade das suas premissas e o surrealismo que as sua prosa evoca, não deixa de ser curioso hoje em dia. E isto, note-se, descontando a sua vasta influência em muitas outras obras. Será talvez difícil ler The Adjustment Team, um conto de 1954 publicado na revista "Orbit Science Fiction" sem pensar em clássicos de culto da ficção científica moderna como The Matrix ou Dark City: a ideia de que a realidade tal como o cidadão comum a conhece é um cenário manipulado a partir de um backstage encoberto ao qual os protagonistas terão acesso, para seu horror, foi uma das pedras de toque de ambos os filmes, capturando os ecos do conto original de Dick para tecer narrativas próprias e bastante influentes no cinema de género que se lhes seguiria. Mas o texto acabaria por conhecer uma adaptação directa em 2011, pela mão de George Nolfi, que se estrearia na realização com The Adjustment Bureau.

E se é certo que a premissa de The Adjustment Bureau é levantada directamente do conto de Dick, os primeiros minutos do filme conseguem afastar as duas obras de forma quase irremediável. O que, em boa verdade, não será talvez uma fraqueza. The Adjustment Team possui alguns elementos que poderiam ser interpretados como demasiado surreais (o primeiro "Summoner" que aparece tem a forma de... um cão), e, se traduzida com rigor para o grande ecrã, toda a descoberta da realidade em ajustamento pelo protagonista iria exigir o trabalho de computer generated images que, nos dias que correm, acaba por se tornar excessivo em tanta ficção científica cinematográfica. Nolfi, seja por limitações orçamentais ou por visão artística, optou por manter da história original apenas o esqueleto da premissa, e desenvolver tudo o resto de forma mais terra-a-terra, puxando a história para o romance. O que acaba por resultar num filme bastante curioso.


The Adjustment Bureau começa com David Norris (Matt Damon), um jovem underdog político em ascensão, em plena campanha eleitoral para representar o estado de Nova Iorque no Senado. O entusiasmo da campanha acaba por não se traduzir em votos: o seu adversário, um político mais velho, acaba por vencer de forma inapelável (talvez se possa encontrar aqui uma crítica a alguns traços dos sistemas políticos ocidentais, mas Nolfi não persegue o ponto). Enquanto prepara o seu discurso de derrota, muito politicamente correcto e by the book, Norris é surpreendido por Elise (Emily Blunt), num encontro imprevisível. O discurso que tinha preparado acaba por dar lugar a outro, improvisado, tão inesperado como excepcional, que consegue relançar a sua carreira política mesmo após tão pesada derrota.


Sem que saiba, Norris encontra-se a ser vigiado por uma equipa de agentes bastante peculiares: o seu propósito não é de todo evidente, e os seus métodos são no mínimo invulgares. Harry (Anthony Mackie) é o agente que está encarregado de acompanhar Norris, e numa certa manhã tem como tarefa fazê-lo entornar o seu café. Uma distracção, porém, impede-o de o fazer, e Norris consegue apanhar a horas o autocarro que era suposto perder. E lá, por uma coincidência espantosa, volta a encontrar Elise. Desta vez, porém, esta dá-lhe o seu contacto e ele promete ligar-lhe de volta.


O problema surge quando chega ao escritório e se depara com uma cena tão bizarra como improvável, que o levará a questionar tudo aquilo que sabe, ou que julga saber, sobre a realidade. A sua tentativa de fuga é rapidamente gorada; e o agente Richardson (John Slattery) explica-lhe que estavam a fazer um ajustamento na realidade, para a colocar de acordo com plano do "Chairman"; e que não só não era suposto ele ter visto aquilo, como também não era suposto ter reencontrado Elise - qualquer envolvimento romântico entre ambos está fora do plano, não devendo por isso acontecer em circunstância alguma. Para reforçar essa necessidade, o contacto de Elise é destruído, e David é ameaçado: se revelar o que ali se passou, as consequências serão terríveis.


David, porém, não consegue afastar Elise da sua mente; e, três anos volvidos, uma nova coincidência volta a fazer com que os caminhos de ambos se cruzem. Ignorando a ameaça dos agentes, David tenta reatar a relação, o que obriga a burocracia oculta a recorrer a métodos mais extremos para o impedir, exibindo a espantosa capacidade de percorrer grandes distâncias utilizando portas aparentemente comuns.


A forma como o tom do filme é estabelecido nas primeiras cenas do filme é excelente: os desempenhos de Matt Damon e Emily Blunt são notáveis, e a química que se estabelece entre duas personagens com personalidades tão diferentes é imediata e credível. Nolfi coloca toda uma série de elementos importantes de forma bastante discreta, utilizando cameos de figuras públicas reais como Jon Stewart para dar verosimilhança à premissa e aludindo tanto à pouca coincidência que existe nos encontros fortuitos de David e Elise como ao poder dos agentes; e estes surgem individualizados e sólidos, quando poderiam ser indistintos. Durante a primeira parte do filme, os agentes são acompanhados por um tom muito próprio, com frequência ligeiro - momentos próximos da comédia acabam por surgir de forma natural, mas nem por isso afastando a ideia de que são a personificação de uma burocracia vasta e inflexível.


Nolfi tem o mérito de não ter caído no facilitismo da acção hiper-violenta gerada por computador e da perseguição alimentada a adrenalina fora de prazo: não se vê em The Adjustment Bureau uma arma, e todas as fugas são feitas a pé, com transições bem montadas entre cenários. Os temas também não se perdem: a paranóia, as dúvidas sobre a realidade e a identidade e a problemática do livre-arbítrio, noções tão caras à obra de Philip K. Dick, estão presentes e são relevantes para o desenrolar da trama. Mas apesar de dar a entender algumas das consequências do não cumprimento do plano fora do círculo pessoal dos protagonistas, o argumento nunca leva essa ideia às suas últimas consequências - e ao optar por não o fazer, não permite que The Adjustment Bureau se revele tão ousado como poderia ser dentro dos seus moldes de romance; e, ao fazê-lo, nunca dá à ameaça burocrática a ameaça necessária para a tornar verosímil.


E essas fraquezas acabam por ter reflexos no último terço do filme, e num final tão inusitado como insípido, resolvido por via de uma espécie de deus ex machina invulgar na medida em que se revela, ao mesmo tempo, literal e ausente. Há um momento em particular no final que parece indicar um desenlace cliché, tão evidente que Nolfi parece tê-lo evitado de propósito. O problema é que tal cliché, por mais batido que esteja (e está), seria naquelas circunstâncias o único desafio possível dentro da lógica interna do filme, e daria ao clímax uma dimensão muito mais elevada.


Quem procurar uma adaptação mais rigorosa dos temas, das ideias e do tom inigualáveis de Philip K. Dick deverá regressar a Richard Linklater e A Scanner Darkly, porventura a mais fiel das transposições da sua ficção para o cinema. As ideias centrais de Dick até estão presentes em The Adjustment Bureau, e o filme recorre aos pilares fundamentais de The Adjustment Team, mas despe-os do surrealismo e da estranheza que pautam o conto original para desenvolver uma história mais terra-a-terra, ancorada com mais firmeza no romance e com um toque de acção que consegue ser eficaz na sua contenção e no seu afastamento das fórmulas contemporâneas. É uma pena que George Nolfi não tenha tido a coragem de levar a premissa às suas derradeiras consequências, sobretudo na segunda parte, e que o final tenha sido tão fraco - duas limitações que não tornam The Adjustment Bureau num mau filme (os desempenhos de Blunt e Damon nunca o permitem), mas não lhe permitem ascender à altura das ideias que propõe. 6.9/10

The Adjustment Team (2011)
Realização de George Nolfi
Argumento de George Nolfi com base no conto The Adjustment Team de Philip K. Dick
Com Matt Damon, Emily Blunt, Anthony Mackie, John Slattery, Terence Stamp e Michael Kelly
106 minutos

Sem comentários: