Immersion, de Aliette de Bodard
Clarkesworld #69 (Junho de 2012)
Com várias nomeações recentes para os principais prémios literários de fantasia e ficção científica em categorias de ficção curta, a norte-americana de origem vietnamita e educação francesa Aliette de Bodard tem vindo a afirmar-se como uma das mais estimulantes novas vozes no género, com a sua ficção científica de pendor orientalista a soar algo dissonante - no melhor dos sentidos, note-se - para quem, como eu, estiver sobretudo familiarizado com a produção anglo-saxónica. Vencedor dos prémios Nébula e Locus na categoria "Best Short Story" (e nomeado para o Prémio Hugo), Immersion explora temas como a aculturação, globalização e o desejo de pertença intrínseco a cada um de nós - e fá-lo de forma excepcional, criando em poucas linhas um universo ficcional verosímil que sustenta todo o enredo e que enquadra na perfeição o dispositivo que está no centro da narrativa: o immerser, dispositivo que permite ao utilizador projectar para quem o rodeia não a sua imagem real mas uma imagem idealizada em termos estéticos e culturais. Com duas perspectivas distintas, Bodard coloca em confronto duas personagens que simbolizam dois modos radicalmente diversos de estar na vida: na terceira pessoa, o leitor acompanha Qoy, uma jovem rapariga com estudos que, na falta de melhores oportunidades, se vê a trabalhar no restaurate típico da sua família na estação espacial Longevity, independente dos "Galácticos"; e, numa segunda pessoa superlativa, vemos Agnes - ou melhor, vemos a pessoa que se identifica como Agnes perdida nas camadas densas de personalidade projectadas no seu avatar - a acompanhar o seu marido, "Galáctico" de nascimento, na marcação do banquete do seu aniversário de casamento no restaurante da família de Qoy, como que para dar a Agnes a possibilidade de recordar um mundo que já foi seu, e que o immerser lhe diz ser exótico. Através de ambas as personagens e da situação que se proporciona, Bodard tece uma meditação tão fascinante como pertinente sobre o que significa ser-se diferente, ser-se estranho, e sobre como a verdadeira dominação cultural é feita não pela força das armas mas pela força dos hábitos, dos preconceitos e de noções erradas de superioridade ou inferioridade cultural - enquanto explora de forma mais ou menos subtil o impacto que uma tecnologia pode ter na dissolução do indivíduo real em prol de uma imagem idealizada, mas inevitavelmente falsa. As nomeações e distinções fizeram-lhe justiça: Immersion é um conto notável, exemplar de uma nova ideia de ficção científica internacional que começa por fim a emergir, afastando-se dos cânones anglo-saxónicos predominantes ao longo de décadas; e também nessa dimensão a sua leitura se revela muito estimulante.
The Monarch of the Glen, de Neil Gaiman
Legends II, ed. Robert Silverberg (2004)
Mais do que uma sequela curta àquele que terá sem dúvida sido um dos melhores livros de fantasia da última década, a novela The Monarch of the Glen funciona como um epílogo a American Gods - uma pequena história envolvendo Shadow durante a sua passagem pelas terras altas da Escócia, após todos os acontecimentos do romance principal. E o mais impressionante desta novela é o facto de Gaiman conseguir fazer um American Gods-lite, capturando quase na perfeição a estranheza e a dissonância da situação em que Shadow se encontra, quando lhe é oferecido um emprego apenas simples na aparência: servir de segurança numa festa misteriosa que terá lugar numa mansão remota junto do lago. O protagonista, uma vez mais, assume durante praticamente todo o texto um papel passivo, até ao momento em que a sua intervenção se torna inevitável (no caso, forçada) - mas Shadow já não é o homem que era no início do romance original, e o homem que os seus anfitriões imaginavam que ele fosse. Com a imaginação e a mestria habituais, Gaiman reúne uma galeria de criaturas fantásticas, onde monstros e homens se misturam e, mais do que isso, se confundem; e a sua prosa evocativa tece um enredo sobrenatural magnífico, uma passagem que serve em simultâneo de continuação directa e de reforço dos temas estabelecidos em American Gods.
É certo: The Monarch of the Glen não terá decerto satisfeito os leitores que esperavam encontrar, numa história pós-American Gods, um Shadow mais activo e dotado de uma personalidade com mais momentum. Mas Shadow - aliás, Balder Moon, o seu verdadeiro nome e mais uma alusão ao panteão escandinavo - não é uma personagem que, por si, faça a história mover-se; ele é, sim, o ponto central da narrativa, para onde convergem todos os seus elementos constituintes. E é o seu olhar expectante e a sua curiosidade tranquila (nem todos os heróis literários têm de ser detectives - até aqui se nota a desconstrução de Gaiman) que torna as várias personagens mais verosímeis, independentemente das suas origens ficcionais ou mitológicas, e toda a situação mais bizarra.
A Separate War, de Joe Haldeman
Far Horizons, ed. Robert Silverberg (1998)
Quem leu o excelente The Forever War decerto terá reparado numa ponta que Joe Haldeman deixa mais ou menos solta no final do livro - e, quando Robert Silverberg o desafiou a escrever uma novela naquele universo para a antologia Far Horizons, Haldeman decidiu contar o episódio e, de caminho, tentar resolver aquele que será talvez o ponto fraco do seu romance premiado. [A partir daqui, spoilers a The Forever War serão inevitáveis - fica o aviso]. A Separate War começa nos meses que antecederam a derradeira separação do protagonista William Mandella e Marygay Potter após saírem do hospital pelos ferimentos severos que sofreram no último combate, reforçando a lógica militar, burocrática e inflexível, que obriga naquele futuro distante dois dos últimos soldados do século XX ainda no activo a separarem-se - e explora o último confronto da Guerra Eterna pelo ponto de vista de Marygay.
Em termos práticos, A Separate War aprofunda um pouco o tema das consequências da dilatação temporal de um conflito daquela escala, mas acaba por centrar-se na evolução social que Haldeman traçou para a Humanidade na última parte do romance, com controlo populacional em vigor e a homossexualidade a tornar-se na norma das relações amorosas (e a heterossexualidade a ser vista como algo exótico e anacrónico). Ao ler The Forever War, a intenção de Haldeman torna-se evidente - não é tanto fazer qualquer comentário quanto ao tema da homossexualidade, tabu nos anos 70, mas sim demonstrar de forma radical a ideia de passagem de tempo e de mudanças sociais profundas na Terra. E nesse ponto, a ideia tem interesse; é uma pena que a passagem do tempo (e o politicamente correcto...) lhe tenha associado tanto ruído, e que A Separate War pareça tanto uma tentativa de o autor justificar algo, e não de contar uma história relevante (a "ponta solta" não ficou exactamente por resolver). Mas quando se afasta desse tema e se centra na logística da guerra, na relatividade de tempo e espaço do conflito, e no impacto que todos esses factores têm nos soldados - presentes, passados e futuros -, A Separate War acaba funcionar como um capítulo extra de The Forever War, extrapolando algumas das ideias apresentadas no romance para apresentar situações fascinantes pela sua complexidade; e, nesse sentido, revela-se uma história bastante interessante, e relevante no contexto global da trilogia composta por The Forever War, Forever Peace e Forever Free (acaba por servir, aliás, de ponto de partida para o segundo livro).
Em termos práticos, A Separate War aprofunda um pouco o tema das consequências da dilatação temporal de um conflito daquela escala, mas acaba por centrar-se na evolução social que Haldeman traçou para a Humanidade na última parte do romance, com controlo populacional em vigor e a homossexualidade a tornar-se na norma das relações amorosas (e a heterossexualidade a ser vista como algo exótico e anacrónico). Ao ler The Forever War, a intenção de Haldeman torna-se evidente - não é tanto fazer qualquer comentário quanto ao tema da homossexualidade, tabu nos anos 70, mas sim demonstrar de forma radical a ideia de passagem de tempo e de mudanças sociais profundas na Terra. E nesse ponto, a ideia tem interesse; é uma pena que a passagem do tempo (e o politicamente correcto...) lhe tenha associado tanto ruído, e que A Separate War pareça tanto uma tentativa de o autor justificar algo, e não de contar uma história relevante (a "ponta solta" não ficou exactamente por resolver). Mas quando se afasta desse tema e se centra na logística da guerra, na relatividade de tempo e espaço do conflito, e no impacto que todos esses factores têm nos soldados - presentes, passados e futuros -, A Separate War acaba funcionar como um capítulo extra de The Forever War, extrapolando algumas das ideias apresentadas no romance para apresentar situações fascinantes pela sua complexidade; e, nesse sentido, revela-se uma história bastante interessante, e relevante no contexto global da trilogia composta por The Forever War, Forever Peace e Forever Free (acaba por servir, aliás, de ponto de partida para o segundo livro).
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