Ponto prévio em jeito de disclaimer: a haver claques na Fantasia como há na Ficção Científica, eu pertenceria claramente ao grupo que tem na Terra Média de Tolkien a sua grande referência e inspiração. Já li tudo o que me foi possível ler daquele mundo, tenho The Silmarillion como livro preferido de Tolkien e tenciono comprar e ler, quando tal me for possível, os doze volumes que compõem a vasta The History of Middle-Earth. Isto para dizer que à partida qualquer novidade sobre este universo fantástico seria (e será) recebida por mim com entusiasmo, ao qual se junta a inevitável subjectividade. Posto isto, passemos então para o tema deste artigo, que é o filme The Hobbit: An Unexpected Journey, a adaptação do clássico infantil de Tolkien por Peter Jackson, que há uma década surpreendeu e encantou o mundo ao levar para o grande ecrã o mundo imaginado pelo professor britânico.
E podemos começar por eliminar desde logo o óbvio: sem querer de modo algum desvalorizar a trilogia The Lord of the Rings, que considero a todos os níveis notável, é importante notar que muito do impacto causado pelos três filmes foi também devido ao factor surpresa: poucos seriam aqueles que esperavam uma adaptação razoável de uma obra tão vasta, e provavelmente menos ainda seriam aqueles que imaginaram Jackson capaz de fazer três filmes daquele calibre. The Hobbit: An Unexpected Journey não poderia jamais beneficiar desse factor surpresa: já conhecemos bem a Terra Média, pelo que seria sempre muito improvável que superasse o hype. É possível que nas mãos de Guillermo Del Toro este novo filme (ou esta nova trilogia) se desmarcasse mais em termos visuais de The Lord of the Rings. Foi, porém, Peter Jackson quem acabou por assumir o projecto; e ainda que a decisão seja questionável, faz todo o sentido que Jackson tenha apostado numa continuidade em termos estéticos - até porque foi bem sucedido da primeira vez - ao invés de arriscar em algo novo.
Esta opção, ainda que aparentemente bem sucedida num contexto mais alargado (para já), revela porém uma faceta problemática, que surge a espaços durante o filme. Como qualquer leitor da obra de Tolkien sabe, The Hobbit é, na sua essência, uma história muito diferente daquela que Tolkien narrou em três livros (seis, se quisermos ser precisos) e que Peter Jackson adaptou para três filmes. Com um tom mais infantil, ao estilo das fábulas ou dos contos de fadas de outrora, The Hobbit - o livro - é mais leve, menos solene e menos grave do que The Lord of the Rings. Não é a demanda de um grupo de pessoas para impedir que as trevas cubram o mundo - é apenas a demanda de um grupo de anões para recuperar o seu reino antigo, roubado por um dragão, e do hobbit que de forma tão relutante como impulsiva (por paradoxal que isto possa parecer) se junta à companhia. Pelo caminho, encontram Trolls esfomeados, Elfos tão alegres que parecem bêbedos (a sério), Gigantes a arremessar fragas uns aos outros, Goblins (Gnomos, se preferirem), aranhas gigantes... e a lista continua. E sim, apesar da sua aura mais "séria", os Anões de The Hobbit são galhofeiros q.b., e as suas cenas de humor são mais slapstick do que outra coisa qualquer. As críticas recorrentes ao tom mais "leve" que An Unexpected Journey assume a partir do momento em que o jovem Bilbo Baggins recebe a inesperada visita de Gandalf são por isso parcialmente infundadas: Jackson limitou-se a transpor a ligeireza do livro em que se baseia para o grande ecrã. No entanto - e daí o advérbio -, a partir do momento em que optou pela continuidade com a sua anterior trilogia, este elemento de jovialidade acaba por ficar um tanto ou quanto deslocado. Isto nota-se sobretudo ao início, pois à medida que o filme avança e ganha ritmo, não só o humor se torna mais natural como a própria narrativa se vai aproximando cada vez mais das tonalidades estabelecidas em The Lord of the Rings.
Mais questionáveis são algumas alterações narrativas em comparação com o livro. Bem sei que alterações são inevitáveis a quaisquer adaptação de uma obra literária para o cinema; no entanto, há detalhes em An Unexpected Journey que causam estranheza, e outros cuja necessidade é no mínimo dúbia. Por exemplo, e ao contrário do que é dado a entender no "prólogo", não existe uma relação de causalidade entre a avareza dos Anões e a chegada de Smaug. A avareza de Thrór traz-lhe alguns dissabores, mas em momento algum esse apego ao ouro constitui uma "maldição" que se manifesta na forma de um Dragão - o que acontece é que os Dragões de Tolkien são avarentos por natureza (mais ainda que os Anões), e gostam de permanecer onde há grandes tesouros (basta recordar Glaurung e o saque a Nargothrond em The Silmarillion e The Children of Húrin). Ainda no prólogo: não há indicação explícita de que os Elfos tenham virado as costas - literalmente - à aflição dos Anões, apesar de a imagem de Thranduil montado num alce à frente de uma hoste de Elfos ser para todos os efeitos espectacular. Mais tarde, é-nos apresentado Azog, o Orc Branco, inimigo de Thorin e o vilão do filme (não do livro; nesse, o Goblin é Bolg), com todas as indicações de que vai morrer às mãos do Príncipe dos Anões, o que deverá anular em parte o papel formidável de uma das mais intrigantes personagens de Tolkien, que será introduzida no segundo filme. Por fim, a introdução de Radagast the Brown pareceu-me demasiado forçada, para não dizer de todo desnecessária. Se por um lado pouco acrescenta à história lateral do White Council e do Necromante de Dol Guldur, por outro o papel que cumpre poderia ter ficado com Gandalf (como devia, pois não é por acaso que ele tem a chave da porta secreta de Erebor). De resto, a sua caracterização acaba por ser demasiado fantástica mesmo para um filme de high fantasy. Sim, o personagem está curioso, e Sylvester McCoy dá-lhe graça e personalidade. Mas não encaixa, nem como extra para uma edição alargada.
Também no ritmo narrativo, sobretudo da primeira parte do filme, podemos apontar alguns problemas. Mantendo-se em território familiar, The Hobbit: An Unexpected Journey abre com um prólogo que apresenta os Anões, a Arkenstone, o reino de Erebor, a (outrora) grande cidade de Dale e a prosperidade que aquelas terras conheceram durante os tempos de Thrór, o Rei Debaixo da Montanha - e a destruição de tudo perante o poder devastador de Smaug, o flagelo alado vindo do Norte. Em The Fellowship of the Ring, Jackson optou por contar a história do Anel num (magnífico) prólogo narrado por Galadriel, e A Unexpected Journey repete a estratégia de infodump deixando para o prólogo a história do povo de Thorin. Mais tarde, repete a graça com a história de Thorin e Azog na Batalha de Azanulbizar. O sucesso destas opções é, no mínimo questionável - talvez a história dos Anões tivesse sido mais eficaz durante a canção dos Anões, ou mesmo contada aos poucos ao longo da narrativa, e talvez houvesse uma forma mais eficaz de introduzir o vilão - partindo do princípio de que este vilão será, de facto, indispensável (é duvidoso, mas por enquanto ainda dou o benefício da dúvida).
Estes problemas, porém, acabam por ser menores num filme que funciona surpreendentemente bem, sem aborrecer apesar das suas quase três horas. Seja essencial ou não para a narrativa, o prólogo é a todos os níveis espectacular, mostrando a vida em Dale, o esplendor do reino de Thrór e a violência do ataque de Smaug, sem nunca mostrar de forma explícita a forma do dragão. Da mesma forma, a sequência da Batalha de Azanulbizar mostra de forma muito eficaz a dimensão daquela batalha, o custo que teve para os Anões e o motivo pelo qual Thorin ganhou a alcunha de "Oakenshield". E a verdade é que, se as cenas em casa de Bilbo são divertidas e ajudam a estabelecer as personagens, a partir do momento em que a Companhia se faz à estrada o filme vai ganhando ritmo e tornando-se cada vez mais interessante, culminando na vertiginosa sequência nas grutas dos Goblins, na excelente batalha de Thorin (apresentando-o desde logo como um líder com fraquezas) e, sobretudo, no capítulo Riddles in the Dark, onde Gollum volta a encantar. Pessoalmente, não dei pelas três horas do filme.
O elenco é formidável - Ian McKellen, Hugo Weaving, Christopher Lee e Cate Blanchet regressam muito bem às personagens que interpretaram na trilogia The Lord of the Rings, e mesmo Ian Holm e Elijah Wood têm um momento curto mas muito relevante para estabelecer o ponto de partida do filme. Andy Serkis volta a desempenhar Gollum, e diria que está ainda melhor do que antes. Mas é Bilbo e os Anões quem mais brilha. Martin Freeman brilha no papel do hobbit, dando-lhe maneirismos e expressões que se tornam características e conferem densidade à personagem, roubando definitivamente a personagem a Ian Holm. E os Anões vão aos poucos ganhando as suas próprias personalidades. Individualizar treze anões é difícil mesmo num filme de três horas, e Peter Jackson provavelmente precisará das nove horas (e vários minutos) da trilogia completa para o fazer na totalidade; no entanto, começou muito bem, delineando o orgulho e a aura trágica de Thorin, o início da cumplicidade entre Balin e Bilbo, o ar bonacheirão de Bombur, a ousadia de Bofur e a jovialidade de Fili e Kili. Richard Armitage no papel de Thorin fez-me, em alguns momentos, lembrar o Aragorn de Viggo Mortensen, na sua gravidade e solenidade naturais - e a passagem da canção da Montanha Solitária é um dos mais memoráveis do filme (com a melodia que se torna central a toda a história). Mas foram Ken Stott e James Nesbitt, como Balin e Bofur, quem mais me agradou entre os treze Anões.
Visualmente, e como já referi, An Unexpected Journey mantém-se muito fiel à trilogia The Lord of the Rings - por isso, podemos contar com muitos planos da diversidade natural da Nova Zelândia. No entanto, a grande e polémica novidade deste filme foi a rodagem a 48fps (frames per second), quando o padrão no cinema (ainda) é de 24fps. Muito se disse sobre esta opção de Jackson: que é hiper-real, que juntamente com a CGI faz o filme parecer um videojogo (!), que provoca náuseas e tonturas. A, mim, porém, pareceu-me extraordinária - longe de tornar An Unexpected Journey num videojogo, confere-lhe uma nitidez e uma fluidez ímpares, que tornam os efeitos especiais mais vivos e impressionantes. O meu receio de que o filme parecesse demasiado artificial devido à excessiva utilização das telas verdes e de CGI revelou-se infundado - sim, há uma maior utilização de efeitos especiais - notória sobretudo nos Goblins, mas em termos gerais estão bastante bons (Azog está algo artificial, mas essa artificialidade confere-lhe uma interessante estranheza). Já o 3D é acessório - não incomoda, mas que ninguém espere encontrar aqui o novo Avatar.
The Hobbit: An Unexpected Journey tem as suas falhas, e nota-se de forma muito evidente que, apesar do tom um tanto ou quanto mais ligeiro, Jackson optou por se manter na zona de conforto que estabeleceu com a trilogia The Lord of the Rings (as semelhanças em termos de estrutura com The Fellowship of the Ring são muitas e evidentes). Como primeira parte de uma série de três filmes, funciona bastante bem - e abre o apetite para o que se seguirá, na sombria Mirkwood e em Erebor. Dito isto, e recordando o meu disclaimer, serei porventura excessivamente parcial na análise deste filme. Não concordo com muitas das alterações introduzidas no enredo por Peter Jackson, e concedo que talvez fosse interessante ver algo mais distinto, como acontece nos livros. No entanto, nem por isso deixo de considerar An Unexpected Journey um filme bastante bom, e, mais do que isso, um regresso muito bem sucedido à Terra Média. Não exactamente à Terra Média que Tolkien imaginou e descreveu, mas àquela que Peter Jackson recriou (e continua a recriar) no cinema. Que continue. 8.2/10
The Hobbit: An Unexpected Journey (2012)
Realizado por Peter Jackson
Com Martin Freeman, Ian McKellen, Richard Armitage, Ken Stott, Graham McTavish, William Kircher, James Nesbitt, Stephen Hunter, Dean O'Gorman, Aidan Turner, John Callen, Peter Hambleton, Jed Brophy, Mark Hadlow, Adam Brown, Andy Serkis, Hugo Weaving, Cate Blanchett, Sylvester McCoy, Christopher Lee, Ian Hom e Elijah Wood
169 minutos
6 comentários:
Quando iniciaste o comentário pensei: "ele acabou de comprar uma guerra com os aficcionados", mas, pelos vistos não. Vou ver hoje. Espero que o filme não me desiluda mas creio que me vou remeter ao silêncio. Já tudo, de bom e de mau, foi dito sobre o Hobbit. Mais um comentário seria somente redundante. On another news, o Thorin Oakenshield, parece que tem feito estragos junto das senhoras ;)
Eu já comprei essa guerra com alguns aficcionados há muitos anos, ao defender praticamente todas as opções polémicas do Peter Jackson na trilogia "The Lord of the Rings": do destaque ao romance entre Aragorn e Arwen passando pela eliminação (com pena) do Scouring of the Shire... sem esquecer, claro, a eliminação de Tom Bombadil. O que é engraçado, pois o Tom Bombadil é provavelmente a minha personagem preferida dentro de todo o universo de Tolkien (a par talvez de Treebeard e de Húrin).
Totalmente de acordo, provavelmente a opinião que mais me identifico de tudo o que li sobre o assunto. Acredito por isso, que tenhamos um gosto pela mitologia tolkeniana muito idêntico, talvez muito por culpa de também adorar o Silmarillion e tudo o que rodeia a Primeira Era, ou a Era em que tanto o "Mal" como o "Bem" eram extraordinariamente mais significantes. E claro também por venerar toda a tragédia da Balada de Húrin.
Cumprimentos,
Jorge Teixeira
Caminho Largo
A Balada de Húrin é que daria um filme extraordinário... (mas talvez demasiado pesado).
Daria sem dúvida, independentemente se demasiado pesado ou não (que acredito também), tal como a balada de Beren e Lúthien e da ascensão e queda de Gondolin. Nenhuma seria propriamente fácil de adaptar, longe disso, mas que constituem muito bom material lá isso é inegável. Quem sabe um dia :)
Cumprimentos,
Jorge Teixeira
Caminho Largo
Sem dúvida. Se bem que aquilo que eu gostava mesmo de ver era o Del Toro e a sua animação a trabalhar a "Ainulindalë". Seria uma excelente introdução para uma série televisiva :)
A adaptação da queda de Gondolin ou de os Filhos de Húrin seria muito dispendiosa. Só um flashback da Nirnaeth Arnoediad daria uma batalha maior que Helm's Deep e Pelennor Fields juntas... Mas sim, quem sabe um dia!
Abraço
João
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