Roger Zelazny venceu o Prémio Hugo em 1968 com um trocadilho. Ou quase: reza a lenda (se preferirem: de acordo com George R. R. Martin, amigo de Zelazny) que toda a ideia que veio dar origem ao formidável Lord of Light (1967) partiu do trocadilho the fit hit the Shan, que de facto se encontra reproduzido nas páginas do livro, a dada altura. É caso para dizer: pun intended. Com ou sem trocadilho, a verdade é que Lord of Light é um livro tão fascinante pela narrativa que contém como pelas inúmeras narrativas que surgiram de forma mais ou menos espontânea à sua volta. E, para todos os efeitos, é um livro fascinante, uma fusão improvável mas muito bem conseguida de ficção científica com fantasia e religião, num tom especialmente irónico.
Mas comecemos pelo início. A coisa tem quase o estatuto de cliché - várias foram as críticas, análises ou resenhas que li de Lord of Light citam algures no texto o primeiro parágrafo do livro - que, para todos os efeitos, é uma das melhores aberturas que já li em ficção científica (e não só):
His followers called him Mahasamatman and said he was a god. He preferred to drop the Maha- and the -atman, however, and called himself Sam. He never claimed to be a god, but then he never claimed not to be a god. Circumstances being what they were, neither admission could be of any benefit. Silence, though, could.
Assim se apresenta o protagonista, Sam, que ao longo da sua longa vida em vários corpos já tfoi conhecido por vários outros nomes: Kalkin, Siddhartha, Maitreya, Lord of Light, Binder of Demons, The Enlightened One, Buddha (entre outros). Independentemente de, no presente narrativo, ser ou não um deus, é um facto que já o foi no passado, mas desde que decidiu descer dos céus dedicou-se com zelo e fervor a derrubar o poder dos deuses e a distribuí-lo pelos homens.
E que deuses são estes? Para todos os efeitos, são os deuses Hindus, reaparecidos num planeta distante que conquistaram aos demónios para permitirem que a Humanidade o colonizasse, debaixo da sua divina protecção. Brahma, Vishnu e Shiva governam o reino celestial em triunvirato, sob o qual encontramos todos os outros deuses e semideuses do panteão Hindu: Kali, Yama, Ratri, Kubera, Ganesha, Krishna, e muitos outros. A verdade é que estes deuses não são bem aquilo que parecem ser, nem os seus poderes são exactamente divinos, ou mesmo sobrenaturais. Aliás, esse é um dos encantos de Lord of Light: nada daquilo que Zelazny descreve é o que aparenta, num jogo de espelhos tão subtil como inteligente que confere à ficção científica, base de toda a narrativa, um carácter muito verosímil de fantasia épica com uma forte temática religiosa. O resultado é a história prodigiosa da rebelião de um homem contra todo um panteão superior: com o plano que trava, as alianças que forma, e as improvisações que concebe à medida que os acontecimentos se sucedem.
Em termos de narrativa, Lord of Light não obedece a uma estrutura linear - cada um dos sete capítulos é vasto e encerra em si uma pequena história; juntos, os sete formam uma história mais vasta, que, em termos cronológicos, começa não no primeiro mas no segundo. O resultado é uma estrutura não linear mas sujeita a uma curiosa sequência interna, sujeita a uma lógica circular que propõe uma conclusão interessante. A escrita é soberba, com um tom épico e ao mesmo tempo irónico que contribui de forma decisiva para tornar Lord of Light numa obra excepcional.
Fora das páginas, e trocadilhos à parte, já se pensou, há muito tempo, em adaptar Lord of Light para o cinema - um projecto que seria sem dúvida interessante, mas que nunca chegou a ser concretizado. Não que a ideia tenha sido desperdiçada: a suposta produção de um filme de ficção científica serviu de pretexto à CIA para uma curiosa operação de extracção de cidadãos norte-americanos da embaixada do Canadá em Teerão durante a revolução iraniana de 1979. Esta história (verídica) foi há pouco tempo adaptada ao cinema no filme Argo. Já a adaptação de Zelazny ficou para sempre nas proverbiais águas de bacalhau, o que não deixa de ser uma pena.
Voltando ao livro para a conclusão: diferentes leitores vão decerto ler Lord of Light à luz das suas próprias referências - e, nesse contexto, poderão assumi-lo tanto como um livro de fantasia pura como de ficção científica pura. É ambos - e uma das maravilhas do livro é ver como Zelazny conseguiu misturar os elementos de ambos de forma tão consistente para criar algo novo e único. Lord of Light é daqueles raros livros que apetece recomeçar a ler logo após de se ter acabado a única página, para ver todos os detalhes que compõem o quadro. Entra directamente para a lista dos melhores.
2 comentários:
Tenho The Great Book of Amber dele para ler, mas, dúvidas houvesse, depois disto o Lord of Light vai directo para a wishlist!
Acrescenta-o, sim, que vale muito a pena. É um livro formidável.
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