Falar de ficção científica cinematográfica sem mencionar algumas obras de animação japonesa seria deixar de fora alguns filmes incontornáveis do género. Já falei, há algumas semanas, de Paprika, e certamente mencionarei outros clássicos ao longo desta série. Hoje, e recordando o que escrevi há dois anos no Delito de Opinião, dedico o artigo semanal sobre cinema a Ghost in the Shell (Mamoru Oshii, 1995 - e perdoem-me os leitores por evitar as designações japonesas ou a ridícula tradução portuguesa para "Cidade Assombrada") - que, mais do que ser um dos grandes filmes de animação japonesa, é com toda a justiça um dos melhores filmes de ficção científica da década de 90.
Baseado no mangá homónimo de Masamune Shirow, Ghost in the Shell leva-nos para um universo ciberpunk com óbvias inspirações no inevitável Blade Runner, tanto na atmosfera como também no enredo. A narrativa decorre numa Tóquio futurista, com uma sociedade na qual a rede (uma Internet extremamente sofisticada) se tornou ubíqua com o acesso ao fluxo ilimitado de informação directamente através de implantes cerebrais cibernéticos. A protagonista é Motoko Kusanagi, Major da Secção 9, uma unidade governamental de combate ao ciberterrorismo altamente especializada com uma liberdade de acção considerável e que, habitualmente, é chamada a resolver situações que as restantes agências governamentais não conseguem solucionar por meios convencionais. Mas Motoko não é exactamente humana, mas sim uma cyborg - a sua mente humana reside num corpo artificial topo de gama -, e questiona-se permanentemente sobre a sua condição. Que, diga-se de passagem, está longe de ser invulgar - dentro da Secção 9, apenas o líder, Aramaki, e um dos mais novos membros, o ex-polícia Togusa, são completamente humanos (Togusa, aliás, foi seleccionado precisamente por esse motivo). No decurso de uma nova investigação, a Secção 9 tropeça numa ponta solta de uma conspiração com origem noutra agência governamental - e um famoso hacker,uma "consciência sem corpo" auto-intitulada "Pupper Master", emerge no ciberespaço e leva Motoko a procurar por todos os meios obter as respostas sobre quem (ou o que) ela é.
Como mencionei acima, Ghost in the Shell vai beber directamente à fonte de Blade Runner (e, em termos literários, diria que também Neuromancer, de William Gibson, é uma influência deste filme), não só no tema - onde reside exactamente a fronteira que separa a vida "natural" da "artificial" - mas também na atmosfera, na grande e sombria metrópole, simultaneamente sofisticada e suja (gritty), onde até os momentos que decorrem durante o dia parecem difusos e sombrios. Mas mais relevante do que as suas inspirações seja o facto de Ghost in the Shell ser, em si e por mérito próprio, um marco incontornável na ficção científica cinematográfica. A título de exemplo, The Matrix, um dos mais populares e influentes filmes de ficção científica das últimas décadas, tem nesta obra japonesa uma das suas grandes influências.
Longe de cair no velho - e tão gasto - estereótipo que define filmes de animação como filmes para crianças, Ghost in the Shell apresenta uma narrativa e muito bem construída em redor de poucas mas interessantes personagens, com uma animação extraordinária para a época (e que ainda hoje considero excelente). É um thriller denso, violento a espaços, com excelentes sequências de acção a quebrar o tom "filosófico" que atravessa toda a narrativa. Ghost in the Shell é, a todos os níveis, imperdível - e inesquecível. 8.8/10
Em jeito de nota de rodapé: se gostarem deste filme, não deixem de ver as duas temporadas da série televisiva "paralela" Ghost in the Shell: Stand Alone Complex - de longe, uma das melhores que já vi.
2 comentários:
Já agora uma menção para a extraordinária partitura musical de Kenji Kawai (que voltou para a sequela). Uma das mais belas e potentes composições que já ouvi para filmes de FC, incluindo Blade Runner, 2001 e Forbidden Planet.
De facto, não mencionei a banda sonora - e devia, pois é excelente, e indispensável para a atmosfera do filme.
Ainda não vi a sequela. Queria tê-la visto no Monstra, mas não consegui ir a nenhuma das sessões. Algo a resolver em breve.
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