30 de novembro de 2012

Did not grok: Stranger in a Stranger Land

No Fórum Fantástico, deixei como sugestão de livro a evitar Stranger in a Strange Land, o clássico de Robert A. Heinlein de 1961 que venceu o Hugo Award e se tornou num dos mais influentes livros de ficção científica da década de 60. Esta minha posição causou alguma estranheza, pelo que vou tentar aprofundá-la um pouco melhor, apesar de já ter lido o livro há já largos meses.

De entre os "três grandes" da ficção científica, Robert A. Heinlein será porventura o mais polémico - algo que a mim pouco ou nada me diz. Os primeiros livros dele que tive a oportunidade de ler, Starship Troopers (1959) e The Moon Is a Harsh Mistress (1966), cedo ganharam um lugar perene entre os meus preferidos do género. E mesmo Time Enough for Love (1973), ainda que substancialmente diferente, foi uma leitura bastante divertida. Também por isto, Stranger in a Strange Land foi sem dúvida uma desilusão.

A verdade é que o livro começa mesmo muito bem. A primeira parte, "His Maculate Origin", abre com um vasto e interessante enquadramento para a história que será apresentada ao longo de toda a obra: descreve a primeira expedição tripulada a Marte, que acabou por se despenhar no planeta e perder o contacto com a Terra; duas décadas mais tarde, uma segunda expedição tripulada chega ao Planeta Vermelho e encontra uma civilização antiga de criaturas nativas de Marte e um jovem humano - Michael Valentine Smith -, descendente de dois astronautas da expedição original. A descoberta de Smith e a sua vinda para a Terra causam várias polémicas - há a questão da herança dos seus pais, que devido a algumas invenções (a sua mãe inventara a tecnologia de viagens interplanetárias mais eficaz que existia) e investimentos financeiros lhe dão acesso a uma fortuna inimaginável, e há ainda o problema inerente ao estatuto jurídico da descoberta de um planeta (a explicação do caso é um dos melhores momentos de todo o livro). Enfim, Michael Valentine Smith chega à Terra rodeado por um enorme aparato, e é confinado a um hospital, enquanto se adapta à gravidade terrestre. Por nunca ter visto uma mulher, a equipa que o tem ao seu cuidado é composta apenas por elementos do sexo masculino. No entanto, uma enfermeira, Gillian Boardman, decide quebrar as regras e os procedimentos de segurança para ver com os seus próprios olhos o "Homem de Marte" - e, sem querer, vai precipitar a vasta aventura que se segue.

Heinlein introduz personagens interessantes, como o jornalista Ben Caxton e Jubal Harshaw (que mais não é do que um avatar do próprio Heinlein, tal como Lazarus Long em Time Enough for Love e noutros livros da "Future History"); o enredo, porém, começa a perder o interesse mais ou menos a partir deste ponto. Michael Valentine Smith acaba por se evadir do hospital e por se meter nos mais variados sarilhos, exibindo estranhos poderes psíquicos (ou algo que lhes valha; nunca são explicados) e uma enorme curiosidade para aprender os costumes da Terra. Essa curiosidade leva-o a explorar as religiões, procurando algo equivalente àquilo que experienciara durante toda a sua infância e adolescência em Marte. A coisa, porém, cedo começa a ganhar contornos algo inverosímeis, até se chegar a um momento em que não há suspensão da descrença que valha ao enredo de Stranger in a Strange Land. Heinlein incluiu vários elementos comuns à sua obra, como o seu sentido de humor peculiar e as suas vastas divagações - estas através de Harshaw. O humor, porém, não alcançou a forma mais refinada que Heinlein exibe em pleno em The Moon Is a Harsh Mistress e as divagações, ainda que tenham alguns momentos altos, em geral nunca ganham a relevância que outras personagens lhes conferiram noutros livros, como o Jean Dubois em Starship Troopers, Bernardo de la Paz em The Moon Is a Harsh Mistress, ou mesmo Lazarus Long). Certo - Stranger in a Strange Land antecede todos estes livros, o que poderá porventura explicar por que motivo o seu discurso ainda não se apresenta tão refinado como em obras subsequentes. Ainda assim, mesmo Time Enough for Love, com um amplo recurso à frame story e a outros tipos de narrativa irregular, parece mais consistente do que Stranger in a Strange Land.

Estas minhas impressões podem desaparecer numa futura releitura - parece-me improvável, mas não descarto a possibilidade. Não seria caso inédito - vários foram os livros que considerei fracos numa primeira leitura, incapazes de despertar o meu interesse, para numa segunda leitura me surpreenderem com uma vida que não imaginava conterem. Tratando-se Stranger in a Stranger Land de um livro de um autor que aprecio, e dada a sua relevância para a sua época (com a sua original abordagem aos temas da religião, da sexualidade e da família), é muito natural que o venha a reler, e que venha a apreender outros elementos que à primeira leitura não me cativaram. É também possível que, assumindo esta interpretação de que Stranger in a Strange Land e as obras que se seguiram são afinal sátiras, este livro ganhe todo um novo significado numa futura releitura. Isto, porém, não invalida o facto de a primeira leitura se ter revelado entusiasmante num primeiro momento, para depois se tornar maçadora e incoerente, longe do brilhantismo que Heinlein revelou noutras obras. Talvez isto, por si só, não seja motivo para que se deva evitar Stranger in a Strange Land; mas julgo que Heinlein tem muito mais para oferecer. 

Número 3 da Dagon já disponível para download gratuito

Para todos os efeitos, o universo das fanzines e das e-zines portuguesas ligadas ao Fantástico continua muito vivo neste final de Novembro. Depois da Trëma, da Lusitânia e da International Speculative Fiction (e sem esquecer o Almanaque Steampunk e a Nanozine dedicada ao Steampunk, já há alguns meses), surge agora o terceiro número da e-zine Dagon, editada por Roberto Mendes, também disponível para download gratuito. É possível que o Artur tenha razão, e que toda esta súbita vitalidade demonstrada pelos fãs surja como reacção à falta de iniciativas dentro do Fantástico no universo literário português. Seja como for, a publicação de mais um número da Dagon é uma excelente notícia para o Fantástico português. Espero que a vitalidade desta e de todas as outra publicações se mantenha ao longo de 2013. 



29 de novembro de 2012

Dan Wells: Entrevista no Fórum Fantástico 2012

Dan Wells, autor da trilogia de John Cleaver (I Am Not a Serial Killer (2009), Mr. Monster (2010) e  I Don't Want to Kill You (2011)), Hollow City (2012) e Partials (2012),  foi o convidado especial da edição deste ano do Fórum Fantástico. Não podendo deixar passar a ocasião, fiz-lhe uma curta entrevista no Sábado, a qual aqui reproduzo na íntegra:

Viagem a Andrómeda: Foi ainda durante a infância que descobriu que queria vir a ser escritor? Como se deu essa descoberta?
Dan Wells: Sim. Na verdade, quando eu estava no segundo ano – teria talvez oito anos – disse aos meus pais que queria ser escritor. Isso deveu-se, em grande parte, ao facto de os meus pais serem leitores ávidos – estavam sempre a ler, e eu cresci a ler. Se tivesse de indicar um livro que me inspirou mais do que qualquer outra coisa, a escolha seria os Poemas de Christopher Robin, de A. A. Milne, o autor de Winnie the Pooh. Nunca me interessei muito pelo Winnie the Pooh, mas adorava os poemas de Milne, e ainda os leio hoje em dia. O que me fascinou foi ver que ele não se limitava a escrever palavras, ele brincava com palavras, e via-se que ele se divertia imenso a fazê-lo. Foi isso que despertou o meu interesse, e me fez descobrir que era exactamente aquilo que queria fazer. Para além disso, o meu pai era um grande fã de The Lord of the Rings e de The Hobbit, livros que leu a mim e ao meu irmão quando éramos miúdos. Por isso comecei logo cedo a entrar na fantasia, e mais tarde na ficção científica. Costumava ir à biblioteca local quase todos os dias e lia tudo o que lá havia. Cresci a ler ficção fantástica, e desde esses tempos da minha infância que o meu sonho foi escrevê-la.

VA: Quais eram os seus autores preferidos, e quais as referências literárias mais importantes desse tempo?
DW: A. A. Milne, como já disse, mas a partir do momento em que entrei na literatura fantástica o meu autor preferido passou a ser o Fred Saberhagen, que escreveu fantasia e ficção científica – e também horror. A sua principal série de fantasia começou com The Empire of the East, e continuou com The First Book of Swords, e por aí em diante. Era sobre espadas mágicas e o que elas faziam – e eu adorava essas histórias. A sua série de ficção científica intitulava-se The Berserkers, e esta série foi das primeiras séries relevantes a abordar a ideia de robots assassinos. Ele foi um dos primeiros a abordar o conceito da Máquina de Von Neumann: robots que se podem auto-reproduzir, e que nos querem matar a todos. Hoje em dia esse tema está mais do que batido, foi trabalhado em The Matrix e em muitas outras obras, mas Saberhagen fê-lo antes de muita gente. Há dezenas de livros e de contos sobre os Berserkers. Eu costumava ler um num dia, para ir logo à biblioteca buscar outro. O facto de que ele os escreveu, e de que ele escreveu em ambos os géneros entusiasmou-me – foi assim que fiquei a saber que, se me tornasse num escritor, não teria de escolher um dos géneros. Não teria de dizer “vou apenas escrever mistérios”, ou “vou apenas escrever ficção científica” – poderia escrever tudo, pois isso era o que Saberhagen fazia. Felizmente, há mais ou menos dez anos, quando comecei a ir às convenções para tentar conhecer os editores e para começar a escrever a sério, tive a sorte de o conhecer, de o cumprimentar e de lhe dizer que ele era um dos principais motivos pelos quais eu me tinha tornado num escritor. Essa foi uma das melhores experiências por que passei.

28 de novembro de 2012

International Speculative Fiction: Edição número um já disponível para download

Com alguns dias de atraso, deixo aqui a nota: já está disponível para download (gratuito) o primeiro número da International Speculative Fiction - elevando assim para três o número de fanzines amadoras dedicadas ao Fantástico publicadas no nosso país nos últimos dias (as primeiras edições da Lusitânia e da Trëma tiveram lugar no Fórum Fantástico no passado Sábado). Ainda não tive tempo para lhe dar a devida atenção, mas entre os conteúdos destaco o artigo "Philip K. Dick: A Visionary Among the Charlatans", de Stanislaw Lem, traduzido do polaco por Robert Abernathy.

27 de novembro de 2012

A ficção científica e o cinema: Logan's Run

No século XXII, o que resta da população mundial vive numa cidade isolada, contida numa gigantesca cúpula, sem acesso ao mundo exterior que foi devastado no passado por uma guerra de proporções bíblicas. A sociedade que sobrevive na cidade, porém, vive uma autêntica utopia: tudo aquilo de que necessitam é fornecido pelo computador central que governa a cidade, permitindo à população dedicar-se apenas ao lazer, libertada que está de quaisquer preocupações - até da reprodução. Só existe um aspecto negativo neste aparente paraíso: para controlar a população, os habitantes da cidade apenas podem viver até aos 30 anos. Os habitantes da cidade levam uma vida hedonista e despreocupada, seguros de que o computador central lhes proporcionará tudo aquilo de que necessitarem, certos do tempo de vida que lhes resta para gozar graças ao lifeclock que está implantado na palma da mão esquerda. Quando o seu tempo de vida termina, entregam-se ao ritual do "Carrossel", onde são mortos com a promessa de uma possível reanimação.Esta é a premissa de Logan's Run, filme de 1976 realizado por Michael Anderson baseado no livro homónimo de William F. Nolan e George Clayton Johnson. 

A vida na cidade, porém, não agrada a toda a gente; há quem deseje viver mais do que 30 anos, e que suspeite de que a promessa de ressurreição é falsa. Quando essas pessoas tentam evadir-se das autoridades e escapar ao seu destino, tornam-se runners, e cabe aos Sandmen, agentes de autoridade especiais, capturarem os evadidos e assegurar-se de que são eliminados. O protagonista, Logan 5 (Michael York), é um Sandman - que, numa perseguição a runners com o seu colega Francis 6 (Richard Jordan), tropeça numa pista que o levará a encontrar a enigmática Jessica 6 (Jenny Agutter) e indícios de um grupo que ajuda os runners a evadirem-se, escapando à morte num lugardesignado por Santuário. O computador central ordena a Logan que procure e destrua esse lugar, mas essa missão vai levá-lo mais longe do que imagina...

Todo o conceito de Logan's Run fez-me pensar numa outra obra de ficção científica: The City and the Stars, de Arthur C. Clarke. Não fui o único: Roger Ebert pensou no mesmo. A cidade fechada, isolada na sua redoma, ignorando o mundo que a rodeia por julgá-lo estéril e devastado; o computador central que tudo controla; a entrega voluntária dos cidadãos à morte definida pelo sistema que governa a cidade. Logan's Run, porém, não tem um protagonista tão interessante como Alvin, nem a cidade anónima do tem tantos segredos como a velha Diaspar. O que não é necessariamente mau: Logan's Run é um filme interessante, com uma componente visual invulgar e muito própria, e várias imagens e momentos memoráveis. Os efeitos especiais, porém, cedo ficaram excessivamente datados, longe dos de outras produções da sua época, e as interpretações dos vários actores deixam muito a desejar - excepção feita a Peter Ustinov, brilhante no papel do velho eremita. Tem algumas ideias boas e levanta questões pertinentes, mas não chega perto de outros filmes de ficção científica da sua década - não tem uma componente visual impressionante como a de Star Wars (1977) ou a densidade narrativa de um A Clockwork Orange (1975). Nem por isso, porém, deixa de merecer atenção, ou de ter um estranho e muito próprio encanto. 6.3/10

Logan's Run (1976)
Realizado por Michael Anderson
Com Michael York, Richard Jordan, Jenny Agutter e Peter Ustinov
119 minutos 

26 de novembro de 2012

As sugestões do Fórum Fantástico

A pedido de várias famílias, seguem abaixo as sugestões que eu, o João Barreiros e o Artur Coelho deixámos na tarde de Sábado. As várias sugestões incluem referências online. A vermelho estão assinalados os livros que não recomendámos - ou melhor, que recomendámos evitar:

Artur Coelho:
Livros e BD:
Neste artigo, o Artur explica o que motivou estas escolhas, e deixa mais algumas que acabaram por ficar de fora da sessão.

João Barreiros:
Livros:


João Campos:
Livros:
Jogos:

Com um agradecimento especial ao Artur Coelho e ao João Barreiros pelo envio das suas listas de sugestões - e, claro, pela companhia naquela divertida sessão do Fórum Fantástico.

Fórum Fantástico 2012: Dia 3

Chegou ontem ao fim mais uma edição do Fórum Fantástico - e despediu-se com um dia a todos os níveis fantástico, que começou logo pela manhã com a segunda parte do Workshop de Escrita Criativa Fantástica Trëma, que hoje contou com Luís Filipe Silva, Mário de Freitas e Dan Wells. No seguimento da sessão de Sábado, Luís Filipe Silva abriu o workshop com alguns dos principais obstáculos que os aspirantes a escritores enfrentam - como julgar que se escreve até se escrever de facto, ou a apatia ("o grande inimigo do escritor"), a importância da opinião e da personalidade própria da escrita, e as expectativas que os autores devem quebrar - as dos leitores e as suas próprias, e não as de género. Mário de Freitas, da Kingpin, falou sobre as expectativas dos candidatos a autores, sobre as mudanças introduzidas pela impressão digital no mercado, na importância da qualidade e no papel de eventos e prémios para a divulgação. Já Dan Wells centrou a sua apresentação na investigação necessária à escrita de ficção, sublinhando quão fundamental é a pesquisa para o trabalho de escrita. Esta pesquisa pode ser feita através de dois tipos de fontes: directas, quando o autor experiência ele mesmo algo, ou quando chega à fala com alguém que o fez; e indirectas, quando o autor não tem acesso directo à fonte e tem de recorrer a métodos indirectos de pesquisa, como imagens, artigos ou livros. Contudo, reafirma que por vezes o estilo é mais importante que o rigor, e que a qualidade de uma obra não se avalia apenas pelo rigor ou pela qualidade da escrita - mas também, e porventura sobretudo, pela capacidade de despertar emoções nos leitores e de prendê-los à narrativa. Concluiu reafirmando que o mais importante é contar uma boa história.

A parte da tarde começou com uma curiosa apresentação de Luís Filipe Silva sobre a história da ficção científica portuguesa, a partir de uma investigação que está actualmente a desenvolver. Traçando a origem da ficção científica nacional em textos especulativos de finais do século XIX (O Que Há-de Ser o Mundo no Ano 3000, de Suppico de Moraes, em 1895) e inícios do século XX (Lisboa no Ano 2000, de Melo de Matos, em 1906), avaliou a capacidade premonitória dos autores da ficção científica das primeiras décadas do século XX, que anteciparam acontecimentos relevantes e invenções que marcariam os anos que se seguiriam. Encontra-se também em alguns dos textos apresentados uma forte componente panfletária e doutrinária, mas desconhece-se o seu verdadeiro impacto na sociedade, ou a forma como recebidos na imprensa e nos círculos intelectuais (se foram de facto recebidos, claro).

Na apresentação que se seguiu, o professor Jorge Martins Rosa apresentou o livro Cibercultura e Ficção, resultado de uma investigação que procura compreender o discurso da cibercultura nas suas várias formas. Esta investigação já esteve anteriormente no Fórum Fantástico, na edição de 2010, e foi agora apresentada na sua forma completa por Jorge Martins Rosa, Artur Alves e Daniel Cardoso, que contribuíram para este trabalho com ensaios próprios em várias temáticas. No painel seguinte, sobre "Ficções Além-Género", João Morales conversou com os escritores Afonso Cruz e Pedro Guilherme-Moreira sobre as aproximações ao universo do Fantástico nas suas obras literárias.

Como tem sido habitual nos últimos anos, a banda desenhada assumiu o protagonismo na recta final do Fórum Fantástico, com João Lameiras a moderar um interessante painel com Jorge Oliveira, Nuno Duarte e Joana Afonso. Autor de Thermidor 1929, um projecto pessoal que tem desenvolvido desde 2008, Jorge Oliveira explicou a concepção daquele universo fantástico fortemente ancorado em factos, personagens e localizações reais para explorar o tema das viagens no tempo. Já Nuno Duarte e Joana Afonso falaram sobre O Baile, um original álbum de banda desenhada que coloca zombies numa aldeia costeira em pleno Estado Novo. Nuno Duarte é já conhecido no meio da banda desenhada nacional com A Fórmula da Felicidade, e para esta aventura juntou-se a Joana Afonso, vencedora do concurso do Amadora BD de 2011, que deu uma abordagem muito peculiar aos zombies" marítimos" e àquela macabra  narrativa. 

O tema dos super-heróis nacional foi o pretexto para juntar, num animado debate, José de Matos-Cruz, Daniel Maia, Nuno Amado e Luís Filipe Silva. Nuno Amado falou sobre o regresso de Zakarella, heroína clássica da BD portuguesa, num projecto que começou há alguns anos por nostalgia e que acabou na recuperação da personagem. José Matos Cruz apresentou o projecto O Infante de Portugal, que começou como uma pequena história para dar origem a um projecto mais vasto, com o objectivo de criar uma segunda realidade portuguesa num retrato algo irónico da realidade portuguesa que conhecemos. Daniel Maia é um dos ilustradores deste projecto, com o seu contributo pessoal a notar-se sobretudo nas narrativas em flashback. Luís Filipe Silva, por seu lado, foi buscar a antologia que organizou sobre Pulp Fiction para ilustrar uma história popular simulada, que se assume como verídica apesar de não o ser. 

Fiel à tradição de terminar com a exibição de uma curta, o Fórum Fantástico encerrou com a primeira parte do episódio piloto de Capitão Falcão, uma série televisiva de João Leitão (que por motivos familiares não pode estar presente no Fórum) que acompanha um peculiar e hilariante super-herói e o seu sidekick - Capitão Falcão e o Puto Perdiz - na sua defesa dedicada, intransigente e completamente tresloucada do Estado Novo e de Salazar. Para o ano, espera-se, haverá nova edição.

Ao longo dos próximos dias, publicarei no blogue mais algum material relativo ao Fórum Fantástico 2012: a lista completa de recomendações deixadas por mim, pelo João Barreiros e pelo Artur Coelho na nossa sessão de Sábado, e uma entrevista com Dan Wells. 

Frederik Pohl (1919 - )

Um dos mais antigos autores de ficção científica vivos, Frederik Pohl já fez praticamente de tudo dentro do universo do género - começou como fã (e casou-se com uma fã), foi crítico, agente literário, editor de livros e de revistas, e um escritor incontornável na ficção científica. Vencedor da maioria dos prémios com que o género distingue os seus melhores autores (foi a única pessoa a vencer o Prémio Hugo como autor e editor), Pohl tem uma vasta e relevante obra literária. Concebeu a popular saga Heechee, iniciada em 1977 com Gateway, obra icónica que venceu os prémios Hugo, Nébula, Locus SF e Campbell Memorial, e continuada nas obras Beyond the Blue Event Horizon (1980), Heechee Rendezvous (1984), The Annals of the Heechee (1987), The Gateway Trip (1990) e The Boy Who Would Live Forever: A Novel of Gateway (2004). A sua obra a solo inclui dezenas de outras obras, como Jem (1979) e Man Plus (1976), e colaborou ainda com vários autores. Com Cyril M. Kornbluth publicou a antologia de contos The Wonder Effect em 1962, e escreveu The Space Merchants (1955), uma fascinante distopia comercial à qual daria continuidade sozinho em 1985 com The Merchants of Venus. Em parceria com Arthur C. Clarke, escreveu The Last Theorem, em 2008.

Pohl continua a actualizar com regularidade o seu blogue pessoal, "The Way the Future Blogs". Actualmente, vive em Palatine, no estado de Illinois, nos Estados Unidos. Celebra hoje 93 anos. 

25 de novembro de 2012

Citação fantástica (42)

Words bend our thinking to infinite paths of self-delusion, and the fact that we spend most of our mental lives in brain mansions built of words means that we lack the objectivity necessary to see the terrible distortion of reality which language brings.

Dan Simmons, Hyperion (1989)

Fórum Fantástico 2012: Dia 2

E ao segundo dia, a chuva salpicou o Fórum Fantástico 2012. Nada que tenha surpreendido quem esteve presente nas últimas edições da convenção (onde até houve direito a trovoada), ou que tenha feito com que várias dezenas de aficcionados do Fantástico se juntassem na Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, em Telheiras.

O dia começou logo pela manhã, com a primeira sessão do Workshop de Escrita Criativa Fantástica do projecto Trëma, em modo mais informal e com três convidados de luxo: Bruno Martins Soares, autor da trilogia de Alex 9; Madalena Santos, autora da saga das Terras de Corza; e João Barreiros, que, enfim, dispensa quaisquer apresentações para quem costuma frequentar o Fórum Fantástico e acompanhar o género em Portugal (e cuja bibliografia na área do Fantástico em Portugal daria para muitos artigos durante muitos dias). Na sua apresentação, Bruno Martins Soares falou sobre os obstáculos à escrita, sobre as "fórmulas" da escrita, os tipos de enredo e a relevância das técnicas de escrita de guionismo. Já Madalena Santos explicou como controlar a narrativa numa saga, partindo do exemplo da sua própria série literária para ilustrar a necessidade de o autor de uma saga pensar no grande plano narrativo sem perder de vista os detalhes e a planificação das várias intrigas. E, claro, sublinhou duas coisas fundamentais para elaborar uma saga: manter a prática noutros projectos, dada uma saga exigir muito tempo e ser, por natureza, um projecto demorado, e fazer uma revisão constante. Para concluir, João Barreiros referiu a importância de escrever devagar, não deixando a velocidade da escrita sobrepor-se ao fluxo de imagens da história, e considerou ser mais relevante a opinião das personagens nas descrições do que a do narrador. Relembrou que na ficção científica, mais visual e emotiva por natureza, o enquadramento (background) é normalmente mais relevante do que as personagens em si. Essa é mesmo uma das características mais marcantes do género e um dos pontos que o distingue da restante literatura. Inevitavelmente, deixou ainda algumas sugestões nas entrelinhas (The Centauri Device, de Michael John Harrison, e Helliconia, de Brian Aldiss). 

A tarde começou com a apresentação de alguns dos mais recentes projectos do Fantástico em Portugal. Na primeira sessão, Rogério Ribeiro (o editor) apresentou a primeira edição da revista Trëma, que reuniu um conjunto de textos muito variados, do conto ao ensaio, da crítica à crónica, e até mesmo uma entrevista muito interessante com o autor Ivor Hartmann, sobre a ficção científica africana. Nos contos, a Trëma apresentou trabalhos originais de Luís Filipe Silva, Carina Portugal, Maria Amaral Ribeiro e Rui Ângelo Araújo; uma crónica do Rogério Ribeiro, uma crítica de Andreia Torres e dois ensaios - um do Artur Coelho e outro da minha autoria (que, aproveito para dizer, é uma versão revista e adaptada do ensaio O Sofisma da Ficção de Género, que publiquei aqui no Andrómeda a 1 de Novembro). 

O segundo projecto apresentado foi a revista Lusitânia, uma publicação dedicada à ficção especulativa centrada em Portugal. O projecto Lusitância conta com uma equipa composta por Carlos Silva, André Pereira, Alexandra Rolo, Anton Stark e Luís Carreto, e nesta primeira edição contou com as colaborações de Raquel Leite, Marcelina Gama Leandro, José Pedro Lopes, Catarina Lima, Pedro Miguel Ribeiro Cipriano, Andreia Silva, Inês Valente, Nuno Almeida e Bruno R.. 

Por fim, a equipa responsável pela organização pela EuroSteamCon no Porto, em Setembro último - Sofia Romualdo, Joana Lima, André Nóbrega e Rogério Ribeiro - fez uma retrospectiva do evento. Esta convenção teve lugar no Edifício Parnaso, nos dias 29 e 30 de Setembro, e contou com vários convidados, cosplay, concursos e com a edição do surpreendente Almanaque Steampunk. Ficou a promessa de nova edição para o ano.

O painel que se seguiu debateu o tema dos "Mitos e Fantasmas na Ficção Nacional", e contou com a presença da jornalista Vanessa Fidalgo, do Correio da Manhã, que a partir de uma investigação jornalística acabou por escrever o livro Histórias de um Portugal Assombrado, com uma recolha de histórias e mitos do sobrenatural de todo o país. No painel participaram ainda David Rebordão, cineasta e autor da célebre curta de terror A Curva, e Cláudio Jordão e Nélson Martins, criadores da não menos célebre curta Conto do Vento, que após ter corrido mundo e vencido vários prémios foi exibida no Fórum Fantástico.

A segunda parte do programa da tarde começou com as já clássicas sugestões de livros - este ano alargadas também para a banda desenhada e para os jogos, contando com a inevitável (e sempre excelente) presença de João Barreiros, de Artur Coelho e deste vosso escriba (que não falava em público desde que deixou de estudar há já alguns anos). Assim que me for possível, e a pedido de várias famílias, dedicarei um artigo às várias sugestões que deixámos naquele painel - tanto aos livros, às bandas desenhadas e aos jogos recomendados, como também às sugestões a" evitar".

No entanto, o que de facto fez encher o auditório da Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro foram as duas apresentações literárias que encerraram a tarde. O norte-americano Dan Wells, autor de I'm Not a Serial Killer, Hollow City e Partials, foi um dos convidados especiais desta sétima edição do Fórum Fantástico para apresentar o segundo livro da trilogia de John Cleaver, Mr. Monster (editado em Portugal pela Contraponto), e não desiludiu quem lá esteve para o ver - sempre descontraído e bem disposto, falou sobre a personagem de John Cleaver, a sua trilogia e as suas influências literárias. Houve ainda tempo para destacar os seus outros trabalhos - Hollow City e a sua incursão pela ficção científica com Partials, projecto iniciado este ano.* A apresentação de Dan Wells esteve a cargo de Luís Filipe Silva e de Rogério Ribeiro.

Seguiu-se a apresentação oficial da mais recente antologia da Saída de Emergência: Lisboa no Ano 2000 - Uma Antologia Assombrosa Sobre uma Cidade que Nunca Existiu. Organizada por João Barreiros, que a apresentou com muito humor, esta antologia teve como objectivo juntar num todo coerente histórias alternativas de escritores de ficção científica do início do século XX, mas contadas por autores do presente. Dos vários autores que contribuíram para esta antologia com contos originais estiveram presentes na apresentação Ana C. Nunes, João Ventura, Telmo Marçal e Jorge Palinhos, com outros autores a marcarem presença na sessão de autógrafos. Na apresentação, o editor Luís Corte-Real traçou uma breve história das antologias da Saída de Emergência, e anunciou a próxima - uma sequela à popular antologia dedicada à Pulp Fiction, uma vez mais organizada por Luís Filipe Silva.

Este segundo dia do Fórum fantástico 2012 terminou assim com as duas sessões de autógrafos - e com muita chuva. O programa continuará hoje, no último dia da convenção.

* A apresentação do Dan Wells foi mesmo muito boa. Não me alonguei mais pois nos próximos dias será publicada a entrevista que fiz ao autor, que incluirá mais detalhes sobre a sua obra e carreira literária. 

24 de novembro de 2012

Fórum Fantástico 2012: Dia 1

Arrancou ontem o Fórum Fantástico 2012, a sétima edição da convenção anual do Fantástico nas artes em Portugal. E arrancou muito bem, com a apresentação da Worldcon 2014, que se irá realizar em Londres, e os planos que começam a ser preparados para que se possa organizar um grupo de interessados em aproveitar o facto de a convenção se realizar tão perto e viajar até Inglaterra. Na segunda sessão da tarde decorreu a apresentação oficial dos Workshops de Escrita Criativa Fantástica do projecto Trëma, com os organizadores - Rogério Ribeiro e Luís Filipe Silva - e Dan Wells, que de forma descontraída e divertida falou sobre o podcast Writing Excuses e sobre a actividade de escritor, numa pequena amostra daquilo que certamente será a sua participação no workshop de Domingo próximo.

Após um longo e excelente intervalo de confraternização, tiveram lugar os dois grandes painéis da tarde. O primeiro, dedicado à Ilustração Fantástica, contou com a presença de dois grandes talentos da ilustração portuguesa: Luís Melo e Ana Gomes. Luís Melo já quase dispensa apresentações: esteve dois anos em Shangai a trabalhar na extraordinária arte do videojogo Alice: Madness Returns, e já trabalhou em diversos projectos de ilustração, tanto a título individual como em projectos colectivos. Define-se como autodidacta, tal como Ana Gomes, que foi aos poucos e por iniciativa própria dominando a arte da ilustração digital. Com fortes influências na arte de H. R. Giger (celebrizado pela série Alien), gosta especialmente de fundir na sua arte elementos orgânicos e naturais às criaturas que concebe, bebendo também inspiração nas poses e nos trabalhos de autores clássicos (como Caravaggio).

O segundo painel teve como tema "Criar SciFi" e contou com três excelentes convidados: António de Macedo, João Alves e Filipe Homem Fonseca (por motivos pessoais, João Leitão não pode estar presente, conforme previsto). Rogério Ribeiro lançou o tema a propósito da participação de dois dos convidados na Antologia de Ficção Científica do Fantasporto, o que os levou a falar daquilo que os cativou e inspirou no Fantástico. António de Macedo, no seu estilo pessoal e sempre cativante, sublinhou o seu fascínio por um Fantástico mais abrangente, e sobretudo a uma certa ideia de um Fantástico ibérico. O primeiro conto que escreveu, relembra, foi aos 12 anos, influenciado pelo seu extraordinário professor de Físico-Química no liceu, Rómulo de Carvalho - que, veio a saber mais tarde, era também o poeta António Gedeão. Inspirado por aquilo que aprendera, começou a explorar a ficção científica literária - e se Júlio Verne o desiludiu, a descoberta de H. G. Wells significou "a descoberta da verdadeira ficção científica". Filipe Homem Fonseca referiu-se à ficção científica como "um bom suporte para dissecar o que é ser humano", ao permitir criar situações limite e explorar as personagens através delas. Não considera fundamental a precisão científica no género, sobretudo numa época em que o domínio da fé se manifesta igualmente na ciência e na religião e quando aquilo que num passado não muito distante pertencia ao domínio da ficção científica é hoje real e está provado. Sobre a sua descoberta do género, referiu o seu desejo de aprender a ler, em criança, para conseguir ler as histórias que as imagens dos comics contavam, e considera-se afortunado por crescer numa época em que eram feitas bandas desenhadas de qualidade superlativa (referiu o Daredevil de Frank Miller e a narrativa final de Captain Marvel) e editadas grandes obras da ficção científica - às quais tinha acesso. 

Já João Alves falou sobre o seu mais recente projecto, Inhuman - um projecto de ficção científica espacial que tem vindo a crescer, e cuja forma final ainda não está completamente definida - será uma obra de animação em 3D, um terreno que só há pouco tempo começou a explorar, mas que pretende dominar para desenvolver este trabalho - seja em formato de curta, seja num projecto de longa duração. 

Para concluir o dia, foi exibida a curta Bats in the Belfry (Morcegos no Campanário), com a qual João Alves venceu a edição de 2010 do MOTELx na categoria de "Melhor Curta".

Hoje, o dia começará cedo, com a primeira edição do Workshop de Escrita Criativa Fantástica do projecto Trëma, e com um dia repleto de apresentações, estreias e painéis. Da minha parte, poderão contar comigo às 17:00 (mais coisa menos coisa), juntamente com Artur Coelho e João Barreiros, a deixar algumas sugestões de livros, bandas desenhadas e jogos. 

Nota#1: É com muita pena minha que não tenho fotografias, mas assim que apareçam algumas na Internet serão feitas as obrigatórias hiperligações.

Nota#2: Uma das coisas mais interessantes das convenções é o contacto com várias pessoas que partilham um interesse comum - no caso, o Fantástico. Nesse sentido, foi um prazer estar à conversa com o Nuno Reis, do SciFiWorld Portugal, apesar do pouco nexo nas minhas palavras (falta de descanso e de café). 

23 de novembro de 2012

Battlestar Galactica: Blood and Chrome: Episódios 5 e 6

As Sextas-feiras continuam a ser os dias de Battlestar Galactica: Blood and Chrome. Abaixo, os episódios 5 e 6 da série Web compilados num único vídeo:



Estão todos convidados:


Time Enough for Love

Be wary of strong drink. It can make you shoot at tax collectors - and miss.
-  Notebooks of Lazarus Long

Time Enough for Love (1973), de Robert A. Heinlein, é uma das mais relevantes publicações da sua célebre série Future History. Nomeado para alguns dos mais relevantes prémios da ficção científica, este livro explora uma parte da vasta história de Lazarus Long, personagem introduzida em Methuselah's Children (1958). Lazarus, já com alguns milénios de idade, é o ser humano mais velho ainda vivo (por força de pertencer às famílias Howard e de várias terapias de rejuvenescimento), mas deseja finalmente colocar um fim à sua vida. Os seus familiares mais próximos, porém, têm outros planos, e decidem impedi-lo. Perante a teimosia dos familiares, Lazarus decide tentar um acordo: não cometerá suicídio enquanto estiverem dispostos a ouvir e a registar as várias histórias da sua vida. 
A fake fortuneteller can be tolerated. But an authentic soothsayer should be shot on sight. Cassandra did not get half the kicking around she deserved.
- Notebooks of Lazarus Long

A partir deste ponto, a narrativa abre-se numa estrutura de frame story ao longo da qual são contadas várias histórias da vida de Lazarus Long. A primeira, e porventura a mais divertida, intitula-se "The Tale of the Man Who Was Too Lazy To Fail". Decorre no (distante) século XX e conta a história de um recruta do exército que ao longo de toda a sua vida conseguiu a proeza de evitar quaisquer trabalhos duros, fazer o mínimo possível em cada situação, e não só sobreviveu como enriqueceu no processo. As outras histórias deste parte, "The Tale of the Twins Who Weren't" e "The Tale of the Adopted Daughter", centram-se em partes do passado de Lazarus enquanto explorador espacial e colonizador de um planeta com uma sociedade muito ao estilo do clássico Oeste selvagem. São relevantes para o leitor perceber não só o próprio Lazarus Long e o seu feroz carácter individualista, mas também alguns dos aspectos mais significativos de pertencer às famílias Howard e ter uma longa vida - nomeadamente no relacionamento com outros seres humanos normais, e na tragédia que ensombra qualquer relação amorosa fora do grupo muito restrito de pessoas com longas vidas ao seu dispor.

Cheops' Law: Nothing ever gets built on schedule or within budget.
- The Notebooks of Lazarus Long

Findas as histórias, a narrativa prossegue para um rumo curioso, mas apenas inesperado para quem não tiver já lido outras obras do autor. A história aborda viagens espaciais, viagens no tempo, relações poliamorosas, e está sempre pautada pela voz inconfundível de Lazarus Long - que, na prática, é a do próprio Heinlein no seu individualismo sem concessões e no seu absoluto (e despudorado) liberalismo. Em dois momentos da narrativa surgem "intervalos" com passagens dos diários de Lazarus Long, recheados de pequenas frases, alguns aforismos e ideias soltas que contribuem para a caracterização deste personagem tão peculiar. 
People who go broke in a big way never miss any meals. It is the poor jerk who is shy a half slug who must tighten his belt.
- The Notebooks of Lazarus Long

Quem já leu outros livros de Heinlein - da série Future History ou outros, como Stranger in a Strange Land ou mesmo The Moon Is a Harsh Mistress depressa se familiarizará com Time Enough for Love - no estilo, nas ideias defendidas, nas mensagens mais ou menos dissimuladas nas entrelinhas. Está repleto de excelentes (e curiosas) ideias, tem momentos excepcionais, passagens divertidíssimas - nos diários são hilariantes - e apesar da sua estrutura narrativa irregular lê-se com surpreendente regularidade. Heinlein era, por natureza, um autor extremamente polarizado, e apesar de o seu talento ser geralmente reconhecido, as suas ideias ou o seu estilo não foram nem são apreciados por todos (é bem possível que ele mesmo fosse o primeiro a reconhecer que daí não viria qualquer mal ao mundo). Quem não aprecia, decerto não irá encontrar consolo em Time Enough for Love; mas para quem, como eu, gosta de outras obras de Heinlein, este será sem dúvida um livro a não perder.
You live and learn. Or you don't live long.
- The Notebooks of Lazarus Long

22 de novembro de 2012

Efeitos especiais antes dos truques da CGI - O caso de Terminator 2: Judgement Day

Hoje em dia, qualquer filme de (ou com elementos de) ficção científica recorre a CGI (Computer-Generated Imagery) para fazer praticamente tudo aquilo que se possa imaginar: cenas de luta, preenchimento de cenários, mecanismos intrincados... até mesmo personagens inteiras - veja-se Gollum em The Lord of the Rings ou The Hobbit. A coisa banalizou-se ao ponto de se tornar mais prático (e decerto mais barato) filmar perante a tela verde e compor tudo em computador do que filmar num local próprio e recorrer a truques de câmara para resolver algumas situações. Muito para desespero de alguns actores, obrigados a actuar no vazio para bolas de ténis ou fotografias - como foi o caso, ainda recente, de Ian McKellen

Houve porém um tempo, e ainda não muito distante, em que mesmo os filmes com os orçamentos mais altos não podiam recorrer a telas verdes para conseguir executar a visão do realizador (ou, mais simplesmente, para não obrigar as equipas técnicas a serem criativas na filmagem e na montagem). Isso, porém, não impediu alguns filmes de se tornarem revolucionários do ponto de vista visual. Mesmo The Matrix, que já envolveu muitas telas verdes, puxou imenso pela força de braços da equipa de produção (literalmente), mas para encontrarmos bons exemplos temos de recuar mais alguns anos. Jurassic Park (1993), de Steven Spielberg, ficou conhecido e foi aclamado pelos seus dinossauros assustadoramente realistas* e quase sempre animatrónicos. Mas julgo que o caso mais interessante é o de Terminator 2: Judgement Day. No blogue da Stan Winston School of Character Arts, é mostrado num longo e fascinante post como foi feito o T-1000, o célebre Exterminador de metal líquido interpretado e imortalizado por Patrick Stewart Robert Patrick** e pela extraordinária combinação de talento e criatividade dos Stan Winston Studios. É uma pena que o vídeo disponibilizado não esteja disponível (devido a questões de copyright com o YouTube), mas tanto o texto como as imagens dão uma ideia muito clara do enorme trabalho necessário para criar um filme com mais de 20 anos cujos efeitos especiais continuam a ser topo de gama - mesmo quando nos encontramos em plena revolução digital.

Evan Brainard, designer de mecânica dos Stan Winston Studios, toca no "Pretzel Man" nos estúdios de Terminator 2: Judgement Day. Imagem da Stan Winston School of Character Arts.


*No ecrã, entenda-se. Sabemos perfeitamente que os Velociraptors eram, na verdade, pouco maiores do que uma galinha, e há elevadas probabilidades de o T-Rex estar coberto de penas e ser mais felpudo do que alguma vez imaginámos

**Corrigido o erro. O actor não se chama Patrick Stewart, mas Robert Patrick. Não perguntem (obrigado, Bráulio, pelo alerta!)


21 de novembro de 2012

Fórum Fantástico: Lançamento do Workshop de Escrita Criativa Trëma

Tal como já tinha sido anunciado, o Fórum Fantástico 2012 vai ser o palco de lançamento do Workshop de Escrita Criativa do projecto Trëma. Com coordenação de Rogério Ribeiro e Luís Filipe Silva, este workshop terá uma periodicidade mensal e decorrerá na Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro. As sessões mensais, que contarão com a presença de vários profissionais da área da escrita fantástica e da produção editorial, terão como base a leitura, a análise a discussão dos contos escritos pelos participantes, com intervenção dos coordenadores. O Workshop será apresentado no Fórum Fantástico, e terá como primeiros convidados Dan Wells, João Barreiros, Mário de Freitas, Luís Filipe Silva, Madalena Santos e Bruno Martins Soares. 


Os temas serão os seguintes:

  • Introdução ao Fantástico como exercício especulativo e seus subgéneros;
  • A Ideia!;
  • Caracterização: O Humano e o Outro;
  • World Building e Pesquisa;
  • Enredo e Conflito;
  • Arco Narrativo;
  • Função do Narrador;
  • Voz, Linguagem e Estilo;
  • Exposição;
  • Diálogo;
  • Gerir a Escrita;
  • Revisões e Críticas;
  • Publicação e Divulgação.


20 de novembro de 2012

A ficção científica e o cinema: A Scanner Darkly, ou a adaptação (quase) perfeita de Philip K. Dick

Já falei várias vezes aqui no blogue sobre A Scanner Darkly, aquele que para mim é (até ver) o melhor livro de Philip K. Dick - uma trip vertiginosa e autobiográfica sobre as consequências do consumo abusivo de drogas pesadas através da história de um polícia infiltrado da Brigada de Narcóticos. Em 2006, estreou nas salas de cinema a adaptação desta extraordinária obra: A Scanner Darkly, realizada por Richard Linklater, uma produção independente de baixo orçamento com um elenco de luxo (Keanu Reeves, Winona Ryder, Robert Downey Jr., Woody Harrelson e Rory Cochrane).

A narrativa de A Scanner Darkly decorre em Anaheim, Orange County (Califórnia), num futuro próximo ("sete anos no futuro", como é dito antes dos créditos iniciais) marcado pela hiper-vigilância dos cidadãos. Numa sociedade com 20 por cento de indivíduos viciados em drogas pesadas, trava-se uma "guerra" sem tréguas entre as autoridades governamentais de combate aos narcóticos e os traficantes de droga. A principal preocupação das autoridades é a "Substance D": uma uma droga tão poderosa como viciante, capaz de provocar danos irreversíveis no cérebro. Para combater o flagelo, a polícia emprega agentes infiltrados que levam uma vida aparentemente normal nos meios onde circulam as drogas. Só nas altas esferas da autoridade é que a identidade dos agentes infiltrados é conhecida; nas instalações ligadas à polícia, utilizam uma tecnologia muito interessante intitulada scramble suit: um fato que lhes oculta a identidade ao mostrar uma série de expressões faciais e volumes corporais a uma velocidade tão rápida que a figura se torna numa mancha indistinta. Robert "Bob" Arctor (Keanu Reeves) é um destes agentes com vida dupla: divide casa com James Barris (Robert Downey Jr.) e Ernie Luckman (Woody Harrelson), e mantém uma relação amorosa e algo platónica com Donna Hawthorne (Winona Ryder). No decurso da sua investigação, começa a consumir "Substance D", tal como os seus companheiros, viciando-se na droga - e começa a sentir os seus efeitos preversos quando sente a sua identidade a fragmentar-se, à medida que o seu trabalho o leva a investigar-se a si mesmo.

Com premissas clássicas de Philip K. Dick - a fragmentação de identidade e a permanente interrogação sobre a realidade -, A Scanner Darkly recria a narrativa complexa e vertiginosa do livro através de um guião fragmentado mas sempre coerente, nunca perdendo de vista o livro em que se baseia. A elevada fidelidade do filme face à obra original, porém, deve-se não só ao excelente guião, mas também a outros dois factores: o elenco e a animação.

O elenco, como referi, é excepcional, e apresenta desempenhos que correspondem às expectativas: Keanu Reeves provou, uma vez mais, ter o melhor agente do mundo, pois a alienação e a inexpressividade que o caracterizam (e que tanta vez servem para o parodiar) fazem dele um Bob Arctor a todos os níveis perfeito; Winona Ryder interpreta uma Donna Hawthorne particularmente expressiva; Woody Harrelson e Rory Cochrane dão solidez e verosimilhança às personagens de Ernie Luckman e Charles Freck; mas é Robert Downey Jr. quem brilha no papel de James Barris, com um desempenho frenético, alucinado, rico em tiques e maneirismos que dão à personagem uma densidade especial. 

A animação é um dos aspectos mais curiosos do filme. Richard Linklater empregou a técnica da rotoscopia (em inglês, rotoscoping), que consiste na construção da imagem animada sobre uma filmagem verdadeira. Dito de outra forma: o filme foi filmado de forma normal na sua totalidade, e animado depois, sobre a filmagem original. O resultado é uma animação simultaneamente detalhada e difusa, viva e colorida, em movimento permanente - e que encaixa na perfeição tanto no tema como no tom do filme, contribuindo para a alienação experimentada por Arctor à medida que a sua identidade se fragmenta. É certo que, para muita gente, a utilização desta técnica de animação foi problemático e diminuiu o impacto do filme; para mim, porém, a sensação foi a oposta: a animação acentuou o tom do filme, ao ponto de meio e mensagem se confundirem para criar um filme único. 

Uma última nota para a excelente banda sonora de Graham Reynolds, e sobretudo para as quatro músicas de Radiohead e para a música a solo de Thom Yorke incluídas no filme. Para além de serem excelentes músicas (claro), encaixam de forma muito subtil na narrativa e na animação. 

A Scanner Darkly será porventura a mais fiel das adaptações cinematográficas da obra de Philip K. Dick - e muitos foram os seus contos e livros a chegar ao grande ecrã, com mais ou menos sucesso. Tanto na evolução do enredo como no tom da narrativa, o filme acompanha os momentos principais do livro, sem deixar de parte duas das mais memoráveis e hilariantes cenas descritas por Philip K. Dick: a discussão a propósito das mudanças da bicicleta e o karma  (chamemos-lhe assim para evitar o spoiler) de Charles Freck. Com uma premissa fascinante, uma narrativa complexa, uma componente visual alucinante e uma banda sonora superlativa, A Scanner Darkly destaca-se com facilidade tanto entre os melhores filmes de ficção científica da última década como entre as melhores adaptações de um dos mais fascinantes - e importantes - autores da ficção científica. 8.1/10

A Scanner Darkly (2006)
Realizado por Richard Linklater
Com Keanu Reeves, Winona Ryder, Robert Downey Jr., Woody Harrelson e Rory Cochrane
100 minutos


Fórum Fantástico: Painel de Banda Desenhada com Nuno Duarte e Joana Afonso

Quem esteve presente na edição de 2011 do Fórum Fantástico decerto se recordará do excelente painel de Banda Desenhada da convenção. Não querendo ficar atrás, a edição de este ano contará com a presença de dois jovens e promissores talentos da banda desenhada nacional: Nuno Duarte e Joana Afonso, que juntos apresentarão uma obra a todos os níveis interessante: O Baile (editado pela Kingpin). 

Nuno Duarte, que já no ano passado esteve no Fórum Fantástico a apresentar A Fórmula da Felicidade (nomeado para seis prémios no Amadora BD), regressa para falar sobre O Baile, álbum de banda desenhada que leva zombies para o tempo do Estado Novo, em vésperas de uma visita papal. Joana Afonso, vencedora da edição de 2011 do concurso Amadora BD, ilustrou este trabalho com o seu traço inconfundível.


19 de novembro de 2012

Battlestar Galactica: Blood and Chrome: Episódios 3 e 4

Com alguns dias de atraso, aqui deixo num único vídeo os episódios 3 e 4 de Battlestar Galactica: Blood and Chrome.

Seasons, de Joe Haldeman, terá adaptação cinematográfica

Seasons, uma noveleta de ficção científica de Joe Haldeman (publicada originalmente na antologia Alien Stars, editada por Elizabeth Mitchell em 1985, e na antologia de ficção curta Dealing In Futures, de Haldeman, publicada no mesmo ano), vai ser adaptada ao cinema. Os direitos de adaptação foram adquiridos pela Sony, e Tim Miller, realizador do recentemente anunciado filme de Deadpool, irá realizar este filme, com argumento escrito por Sebastian Gutierrez (que, para quem não sabe, foi o autor do argumento de uma pérola cinematográfica intitulada... Snakes on a Plane).

Já no que diz respeito à adaptação de The Forever War por Ridley Scott (mencionada pelo Nuno Reis neste artigo do SciFiWorld), duvido que algum dia venha a acontecer. O realizador anunciou recentemente querer realizar e produzir vários filmes de horror e ficção científica de médio e baixo orçamento ao longo dos próximos três anos, e parece querer mesmo avançar com a sequela a Prometheus - e, pior, com a sequela a Blade Runner. É certo que os seus estúdios têm os direitos de adaptação de The Forever War (que foi um dos melhores livros de ficção científica que já li), mas o que não falta é direitos de adaptação esquecidos no development hell (ainda alguém fala na possibilidade de Rendezvous With Rama, de Arthur C. Clarke, chegar ao grande ecrã?). E, de resto, depois do que Scott mostrou no seu regresso à ficção científica com Prometheus, talvez o melhor seja deixar a história do soldado Mandella em paz. 


18 de novembro de 2012

Citação fantástica (41)

It is the difference between the unknown and the unknowable, between science and fantasy--it is a matter of essence. The four points of the compass be logic, knowledge, wisdom and the unknown. Some do bow in that final direction. Others advance upon it. To bow before the one is to lose sight of the three. I may submit to the unknown, but never to the unknowable.

Roger Zelazny, Lord of Light (1967)

Alan Moore (1953 - )

A história dos comics está repleta de figuras - reais - marcantes e geniais, mas poucas terão contribuído de forma tão decisiva para a afirmação qualitativa de um meio de expressão normalmente considerado inferior como Alan Moore. Um dos mais originais autores do género, Alan Moore elevou a fasquia no universo dos comics ao dar-lhe um carácter quase literário na construção e desconstrução das suas personagens, na elaboração narrativa e mesmo nos temas abordados. Entre 1982 e 1985, na extinta revista de comics britânica Warrior, publicou com o ilustrador David Lloyd V for Vendetta, uma densa e fascinante visão de uma Inglaterra futurista e distópica dominada por um governo fascista ameaçado por um terrorista fascinante na sua ambiguidade. Mas foi entre 1986 e 1987 que Moore viria a revolucionar definitivamente os comics com Watchmen, uma série limitada de doze fascículos com ilustração de Dave Gibbons e publicação da DC Comics que desconstrói de forma soberba as histórias convencionais de super-heróis (sem nunca deixa de ser uma história de super-heróis) através de uma estrutura narrativa original e fragmentada. Watchmen recebeu uma enorme aclamação da crítica, dentro e fora da indústria dos comics: para além do Prémio Hugo e de muitas outras distinções, foi a única graphic novel a ser incluída na lista das "All-Time 100 Greatest Novels" da revista Time. 

Mas Alan Moore não ficou por aqui: na sua vasta e extraordinária bibliografia encontram-se comics como From Hell, Lost Girls, Promethea e The League of Extraordinary Gentlemen, entre outras. Reformulou The Swamp Thing, e das páginas desta personagem acabou por contribuir para a criação de outra: o carismático John Constantine, personagem central da série Hellblazer da linha Vertigo da DC. Trabalhou também personagens conceituadas como o Super-Homem ou Batman (entre muitas outras), assinando álbuns memoráveis como The Killing Joke. Em prosa, é autor do livro Voice of the Fire, de 1996.

É também conhecido pela oposição à adaptação dos seus trabalhos a outros meios, nomeadamente ao cinema: várias foram as polémicas desencadeadas pelas adaptações de V for Vendetta e Watchmen.

Natural de Northampton, no Reino Unido, Alan Moore celebra hoje 59 anos. 

16 de novembro de 2012

Hiccup e Toothless de regresso em Dragons: Riders of Berk

Lembram-se de How to Train Your Dragon, o excelente filme de animação da Dreamworks (porventura o melhor que os estúdios produziram desde o original Shrek) inspirado na série literária homónima da escritora britânica Cressida Cowell, que que em 2010 foi nomeado para o Óscar de Melhor Filme de Animação (que Toy Story 3 acabou por ganhar)? Sempre imaginei que a Dreamworks fosse apostar numa sequela, mas para minha surpresa a produtora decidiu antes avançar para Dragons: Riders of Berk, uma série de televisão que dá continuidade à história de Hiccup, dos dragões e dos vikings da ilha de Berk. 

Não que as sequelas estejam descartadas: How to Train Your Dragon 2 está previsto para 2014, e há planos para um terceiro filme. Entretanto, e pelas imagens que já pude ver, quem gostou do filme original irá certamente divertir-se com a série televisiva. 

Brasyl, ou retratos alternativos do Brasil

O mistério de Brasyl, de Ian McDonald, começa desde logo no título, na forma alternativa como apresenta o nome do país onde, saberemos mais tarde, decorrem as narrativas. E aqui o plural é relevante, pois Brasyl apresenta não uma mas três narrativas, cada uma um pequeno fragmento de um Brasil alternativo no passado, no presente e no futuro.

Comecemos pelo passado: Em pleno século XVIII, Luís Quinn, um padre Jesuíta luso-irlandês, é enviado para o Brasil com o objectivo de trazer à justiça divina um padre renegado que se isolou no interior do território brasileiro, nas profundezas da bacia do Amazonas, e lá fundou um reino espiritual. Luís Quinn é acompanhado pelo geógrafo e filósofo francês Robert Falcon, que quer realizar uma curiosa experiência na região equatorial. A viagem de ambos rio acima é especialmente evocativa, num misto de Heart of Darkness ou Apocalypse Now! com a selva brasileira e a colonização portuguesa. Mas com o padre renegado encontram o início de um enigma antigo que os levará mais longe do que alguma vez imaginaram. 

No presente (leia-se 2006): Marcelina Hoffmann, praticante de capoeira e produtora dos mais degradantes reality shows que podemos imaginar (espero que ninguém se vá inspirar - ou se tenha inspirado - nas ideias de McDonald), tem uma ideia brilhante para um reality show que não só poderia apaixonar o Brasil, como também seria a salvação da sua carreira. A ideia parece simples: encontrar Barbosa, o guarda-redes brasileiro que não conseguiu defender o golo que deu a vitória ao Uruguai na final do Mundial de 1950, no Brasil, e levá-lo a "julgamento popular". A busca de Marcelina pelo velho guarda-redes, porém, revela-se tudo menos fácil; e começa a ter problemas sérios quando alguém começa a interferir de forma particularmente destrutiva não só na sua investigação, como também na sua vida. O que a vai levar a uma descoberta extraordinária.

Enfim, o futuro: em meados do século XXI, o Brasil está irreconhecível: uma nação cyberpunk com óculos computorizados, computadores quânticos capazes de fazer cálculos incríveis, e uma vigilância constante através de uma rede de vigilância para todos os efeitos omnisciente. Edson de Freitas, playboy e executivo de oportunidade, conhece a mulher da vida dele durante a tentativa de salvar o seu irmão de um grande sarilho - e por essa mulher acaba por se ver envolvido numa vasta conspiração que transcende o Brasil que conhece e atravessa universos inteiros.

Estas três histórias, tão diferentes no espaço como no tempo, estão interligadas através de uma trama que começa nas entrelinhas e, aos poucos, acaba por se tornar no centro de uma narrativa vertiginosa. São contadas em conjuntos de três capítulos, um de cada narrativa - uma estrutura que, tal como o título, alude à premissa central do livro e deixa uma pista quando ao enigma que une as três histórias num todo tão coerente como fascinante. Cada história de Brasyl leva-nos para um Brasil alternativo mas plausível, ao mesmo tempo familiar e estranho: uma vasta realidade na qual nada é o que parece. A escrita de McDonald é em termos gerais fluída, repleta de descrições ricas (a primeira página da história de Edson é formidável) e com um carácter quase cinematográfico. A mistura livre (e sempre lógica) de expressões de Português do Brasil com o Inglês contribui para o dinamismo narrativo e acentua o carácter exótico (e, para mim, familiar) de todo aquele universo.

Não é, de todo, um livro perfeito: algumas passagens poderiam ser mais sintéticas, e o primeiro indício de que há algo que une aquelas histórias tão diferentes surgirá talvez um pouco tarde. Algumas das influências de Ian McDonald são muito evidentes, como Heart of Darkness de Joseph Conrad (e a adaptação cinematográfica de Francis Ford Coppola, Apocalypse Now!) na história do Padre Luís Quinn, ou a trilogia His Dark Materials de Philip K. Dick, tanto na temática como em alguns elementos que surgem nas histórias (as temíveis "Q-Blades"), mas isso está longe de ser um defeito. Com a sua mistura de influências e de estilos, Brasyl é uma obra muito original na sua concepção e muito sólida na sua construção. É, acima de tudo, um olhar refrescante e muito interessante sobre um Brasil que não é, nunca foi e nunca será - e que nem por isso deixa de ser tão plausível.