3 de junho de 2014

Godzilla: Dos monstros e dos homens

Ainda que seja consideravelmente mais relevante no Oriente do que no Ocidente, o subgénero kaiju da ficção científica cinematográficos - os filmes com grandes monstros, se quisermos simplificar - sempre gozaram de um estatuto icónico muito próprio, derivado sobretudo do primeiro e mais célebre de todos os kaiju: Godzilla. Criado por Ishiro Honda em 1954 para o filme homónimo dos estúdios da Toho como uma metáfora dos traumas nucleares de Hiroshima e Nagasaki, Godzilla deu origem a uma longa e proveitosa franchise, figurando o "Rei dos Monstros" no papel principal ou dando destaque a outras criaturas gigantescas, como Mothra ou Rodan - e cedo se tornou num fenómeno de culto e num ícone popular e inconfundível em todo o mundo, pela devastação causada e pelos seus efeitos especiais inconfundíveis. A sua passagem para uma grande produção de Hollywood seria sempre uma questão de tempo - e foi Roland Emmerich, realizador de destruição massiva lui même, o primeiro a fazê-la, naquele filme sofrível de 1998 que nem o carisma de Jean Reno conseguiu salvar. Uma tentativa falhada, porém, não foi suficiente para afastar o interesse de Hollywood (até porque a bilheteira não correu mal); e eis que chegamos a 2014 e ao Godzilla de Gareth Edwards, que regressa às origens do monstro de Ishiro Honda num blockbuster ambicioso e meta-referencial.

Deixemos o óbvio fora do caminho: em termos visuais, o Godzilla de Edwards é magnífico, uma actualização excepcional do vetusto e pesado monstro pré-histórico para os mais modernos efeitos especiais, numa escala poucas vezes encontrada no género - é a maior versão de Godzilla, e sem dúvida um dos maiores kaiju que o género já ofereceu. A sequência final de São Francisco é soberba pela dimensão e pela energia do combate entre monstros primevos (mesmo nunca alcançando a adrenalina pura de Pacific Rim, para recordar uma das mais recentes entradas do género); e toda a cena do HALO jump ao som do Requiem de Ligeti (que Kubrick já usara em 2001) será sem dúvida uma das mais memoráveis de todos os blockbusters de 2014. 


E há, diga-se de passagem, alguma originalidade na devastação: ainda que São Francisco seja arrasada com metódica regularidade no grande ecrã, Las Vegas e Honolulu - sobretudo Honolulu - não gozam da mesma sorte e não se encontram entre os destinos mais populares de desastres naturais ou humanos. Edwards gere as aparições dos monstros com parcimónia - vários confrontos são atirados para off-screen após breves instantes, deixando antever pela destruição e por imagens fugazes a dimensão da escaramuça. A técnica, reconheça-se, é moderadamente eficaz na construção de suspense e na gestão de expectativas para o showdown final, mas não deixa de transmitir a sensação de que Godzilla acaba por ser uma personagem secundária no seu próprio filme (sim, a crítica tem sido recorrente - e, neste ponto, inteiramente justa).


Isso deve-se à aposta no ângulo humano e do drama familiar para ancorar esta história de kaiju - o que não seria um problema se o argumento estivesse à altura da sua própria ambição, e da qualidade do elenco que Edwards tem à sua disposição. Neste ponto, Godzilla começa bastante bem, com o obcecado Joe Brody de Bryan Cranston a revelar-se numa personagem imperfeita e fascinante, num pai ausente que nunca recuperou da sua culpa de sobrevivente do desastre que se abateu sobre a central nuclear que geria no Japão e que ceifou a vida da sua companheira e mãe do seu filho. 


Mas o seu protagonismo cedo passa para o filho, Ford (Aaron Taylor-Johnson), marine e pai de família regressado da guerra; e a partir desse momento, todo o ângulo humano do filme se esvai entre a irrelevância das personagens interpretadas por actores e actrizes com o talento de Ken Watanabe (um trauma andante), Elizabeth Olsen (reduzida a lágrimas e pouco mais) e Sally Hawkins (a cargo de metade dos infodumps do filme). O tema da reunificação de uma família separada pelo aparecimento dos MUTO e de Godzilla, e ameaçada pela devastação causada pelos monstros, acaba por não se revelar capaz de transportar a narrativa de forma eficiente; e, em última análise, nenhuma personagem para além de Joe Brody deixa uma marca positiva - e activa - no filme.


A ambição deste Godzilla revela-se não só na tua tentativa de se focar no drama humano perante uma devastação sem quartel, mas também na exploração uma metáfora de desequilíbrio natural (sem grande sentido na forma como é apresentada) e na aproximação à realidade contemporânea. Sem o temor nuclear que revestiu o Godzilla original de um carácter simbólico muito próprio, Edwards vale-se da iconografia de destruição deste novo milénio - do 11 de Setembro ao tsunami de 2004 e ao desastre de Fukushima de 2011, as alusões não são em momento algum subtis, mas carecem de um enquadramento simbólico que lhes dê um significado específico. Acto humano intencional? Erro humano? Desastre natural inevitável? Não o sabemos, e não encontramos no argumento respostas esclarecedoras. 


O regresso do rei dos kaiju ao grande ecrã é sempre de saudar - e Gareth Edwards consegue neste seu Godzilla equilibrar a reverência aos filmes clássicos com as exigências mínimas do blockbuster moderno. Infelizmente, a espectacularidade da batalha final entre Godzilla e o casal de MUTO, e a tremenda destruição causada não é suficiente para compensar a mensagem confusa e pouco coerente, as metáforas desconexas e a falta de personagens com relevância e densidade (e a inexistência de uma personagem feminina relevante), e as várias falhas na lógica interna do filme. Em última análise, Godzilla proporciona duas horas de suspense moderado e de entretenimento bastante razoável - mas acaba por faltar kaiju neste filme de kaiju. 6.9/10

Godzilla (2014)
Realização de Gareth Edwards
Argumento de Max Borenstein e Dave Callahan
Com Aaron Taylor-Johnson, Bryan Cranston, Elizabeth Olsen, Ken Watanabe, Sally Hawkins, Juliette Binoche, C.J. Adams, David Strathairn e Richard T. Jones
123 minutos

6 comentários:

Rui Bastos disse...

Eu fui ver isto em IMAX, e embora tenha gostado da gloriosa experiência visual (os kaiju estavam primorosos, especialmente o godzilla), a experiência narrativa deixou muito a desejar.

Para começar livraram-se da melhor personagem (a única relevante, como dizes) antes de chegarem a meio do filme, e de forma estúpida e offscreen.

Depois agarraram no melhor aspecto do filme, o titular godzilla (gojira soa tão melhor) e fizeram um reboot das suas origens. "Não, não é um acidente atómico, estavam a ver se o matavam." e "Ele afinal é um guardião do equilíbrio da Natureza", epah, what? Nem pensar.

Isto vindo de um tipo que viu o original, de 1954, há relativamente pouco tempo: aquilo que faz o godzilla fantástico é o carácter destruidor. O caos e a devastação que deixa atrás de si.

Sim, ocasionalmente ajuda-nos, como aconteceu numa data de sequelas, mas eu também acho esses filmes duvidosos (embora só emita um juízo final depois de os ver). A verdade é que a premissa desta versão é eminentemente idiota.

Agarraram num monstro destruidor, uma força da Natureza no mesmo sentido que um furacão e um tsunami e um terramoto são forças da natureza, e tornaram-no numa espécie de anjo da guarda místico que não nos quer mal, apenas quer o bem do planeta.

Não, não e não.

João Campos disse...

Pois, isso do equilíbrio da natureza pareceu-me demasiado "New Age" para o meu gosto. Não é que desgoste do tema - é preciso é enquadrá-lo de forma convincente, e não foi isso que aconteceu.

E sim, eliminarem a personagem mais interessante no primeiro acto e deixarem os outros dois a cargo de um canastrão não ajudou nada. Isso e não terem dado um papel decente ao Ken Watanabe; imagina que filme espantoso seria se a personagem dele e do Bryan Cranston tivessem o protagonismo que mereciam...!

Mas sim, o Godzilla/Gojira impressiona. King of Kaiju indeed.

Rui Bastos disse...

Exacto, exacto e exacto.

Eu juro que estava à espera de ver um Bryan Cranston a subir desajeitadamente pelas costas do Godzilla acima!

João Campos disse...

E a roubar-lhe a crystal meth? :)

Rita Santos disse...

Ok, houve uma cena extremamente distracting para meu gosto. Então afinal o bicho voa a mantêm a designação de MUTO? No máximo era um godzilla, um MUTO e um MUFO. (Sou assim picuinhas, sou)

João Campos disse...

Nesse caso, devia ser um Godzilla, uma MUTA e um MUFO, não? :)