23 de maio de 2014

Watchmen: Super-heróis meta-referenciais

Mais de vinte e cinco anos volvidos sobre a publicação original dos doze fascículos/capitulos com os quais Alan Moore e Dave Gibbons elevaram em definitivo os comics de super-heróis a um patamar qualitativo literário, o que resta dizer sobre Watchmen? Muito pouco. Lev Grossman, num artigo para a revista Time sobre as dez melhores graphic novels - a mesma revista que incluiu Watchmen entre os 100 melhores romances em língua inglesa publicados entre 1923 e 1987, sendo a única banda desenhada a receber tal honra -, afirma que [i]t's way beyond cliché at this point to call Watchmen the greatest superhero comic ever writen-slash-drawn. But it's true. E é mesmo - graças à sua mistura de desconstrução de todo um género popular com sátira política e uma trama complexa, multifacetada e sempre surpreendente. Quando, em meados dos anos 80, Alan Moore propôs à DC Comics pegar nos super-heróis que a editora adquirira à Charlton Comics e reinventá-los numa história mais sombria, estava decerto longe de imaginar que a história resultante, mesmo não utilizando as ditas personagens, viria a ter um impacto tão profundo na indústria, tornando-se num dos seus títulos mais icónicos e aclamados.

Ao mesmo tempo uma história de super-heróis e uma desconstrução tão rigorosa como implacável do género, Watchmen propõe-se colocar super-heróis num 1985 alternativo, profundamente mergulhado na Guerra Fria que continua a dividir o mundo entre as duas super-potências - e fá-lo através de um enquadramento a todos os níveis espantoso, que recua na cronologia narrativa até às origens dos vigilantes mascarados legais nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, ao primeiro grupo de super-heróis propriamente ditos (os "Minutemen"), à participação destas figuras no quotidiano e à sua ilegalização por decreto em 1973. Moore consegue incluir toda esta backstory, assim como as origens das várias personagens, no fluxo da trama principal, sem perdas de ritmo ou digressões demasiado laterais, encaixando todos estes elementos de forma perfeita num enredo que começa com o homicídio de um homem chamado Edward Blake, que se vem a saber ser conhecido como "The Comedian" - um dos dois últimos heróis mascarados considerados legais pelo governo norte-americano. 

E um dos pontos altos da premissa reside na forma como Moore e Gibbons, conhecendo bem as convenções do género, desmontam alguns dos seus motivos mais persistentes com uma simplicidade desarmante - a reviravolta final com o discurso do vilão (se é que é possível, ou correcto, falar de vilões nesta trama) é, sem dúvida, o exemplo mais flagrante deste carácter meta-referencial, para além de ser um clímax tão assombroso pela sua perfeição e devastador pelas consequências que acarreta; mas há toda uma série de detalhes que saltam à vista que atestam o olhar crítico e irónico que Watchmen lança sobre o seu próprio género - o vigilante morto devido à capa do seu fato será talvez memorável, mas o cruzamento narrativo com um comic de piratas persiste pela sua carga simbólica, pela estranheza que evoca e pela forma subtil mas insistente como leva a premissa às suas últimas consequências: afinal, num mundo onde os super-heróis são verdadeiros e fazem parte do dia-a-dia, dificilmente darão origem a comics populares...

Em termos de trama, tudo se desenrola a partir do homicídio de Blake, que leva o paranóico Rorschach - membro do último grupo de vigilantes, e em actividade clandestina desde a ilegalização - a suspeitar de uma conspiração para eliminar os super-heróis ainda vivos, e a procurar os seus antigos colegas para os alertar: Dan Dreiberg, a segunda encarnação de Nite Owl; Adrian Veidt, o empresário de sucesso outrora conhecido como Ozymandias; Laurie Juspeczyk, que herdara da sua mãe a personagem Silk Spectre; e o Doctor Manhattan, outrora Dr. Jonathan Osterman, o único super-herói que de facto possui super-poderes (devido a um incidente no laboratório). Nada disto surge por acaso - o carácter humano da maioria dos vigilantes permite a construção de personagens imperfeitas e bem desenvolvidas (ainda que Moore acabe por pecar no que à representação feminina diz respeito), e o carácter sobre-humano de Doctor Manhattan é abordado de forma especialmente humana e verosímil, desmontando com astúcia as consequências dos super-poderes (que, diga-se de passagem, vão muito mais além da estafada questão da responsabilidade). 


Claro que a conspiração que Rorschach se revelará bem mais densa e profunda do que ele alguma vez imaginou - e irá levá-lo, a ele e aos restantes heróis, numa invulgar odisseia pessoal e colectiva num mundo que se parece aproximar de um apocalipse. Moore e Gibbons optaram para uma abordagem gráfica clássica para uma história tão pouco convencional: toda a trama é exposta ao longo de pranchas regulares, divididas em grelhas de nove vinhetas cujo rigor e a simetria se afastam da habitual flexibilidade dos comics. Assim como o seu worldbuilding prodigioso, construído também fora dos "quadradinhos" através da introdução de artigos ficcionais entre capítulos, dando uma maior textura às personagens e à sociedade em que se inserem, e fornecendo elementos novos de leitura.

É através da leitura de Watchmen que se entende como a obra anterior de Alan Moore, o excelente V For Vendetta, acabou por ser um ensaio para algo infinitamente mais vasto, ambicioso e complexo - uma história em simultâneo convencional e capaz de derrubar convenções, integrada no seu género e capaz de o elevar e transportar para novos territórios; uma obra que consegue respeitar o enorme legado dos comics de super-heróis enquanto o desconstrói e reduz aos seus elementos mais básicos, reutilizando-os na construção de uma história única e irrepetível. Watchmen é um marco na banda desenhada - a prova definitiva do carácter literário do formato, mesmo quando parte das suas ideias mais pop.

7 comentários:

Anónimo disse...

Tendo lido Watchmen na altura, o que surpreendia era o contraste com a larga maioria dos comics de homens-em-collants. Mas havia já n exemplos da BD europeia que demonstravam o valor artístico do formato desenhado. Há infelizmente muita gente que parece convencida que só os americanos e os japoneses é que fizeram/fazem coisas relevantes.

Loot disse...

Compreendo o que o anónimo diz, mas também é preciso ter em conta a invasão britânica dos comics norte-americanos. Watchmen é da DC mas ambos os seus autores são europeus.

Mas claro que o poder financeiro do mercado americano se faz sentir. A língua também facilita, a maioria das pessoas lê inglês, alguns francês, ma o japonês deve ser uma escassa minoria. Se pegarmos no nosso mercado, por exemplo, eu não leria nunca mangá, felizmente os americanos têm traduzido uns quantos. Quem sabe francês também está safo claro :)

Artur Coelho disse...

é tão bom, não é? a seguir tens de descobrir o promethea, onde o moore leva ainda mais longe a metaficcionalidade nos super-heróis com mitologia, ocultismo e feminismo. e o from hell...

ok, esta não percebi. "Mas havia já n exemplos da BD europeia que demonstravam o valor artístico do formato desenhado. Há infelizmente muita gente que parece convencida que só os americanos e os japoneses é que fizeram/fazem coisas relevantes." temos, por isso, como bloggers europeus, de falar estritamente de bande dessiné (já que o fumetti talvez seja demasiado contaminado pelo comercialismo para alcançar os elevados standards de discussão) 3:) ? eu inverteria o raciocínio. é precisamente pela prevalência dos comics no imaginário popular que vale a pena discutir os exemplos de excelência numa vertente da bd que prima pela estereotipia repetitiva, largas vezes banal...

João Campos disse...

Anónimo, não me passa pela cabeça questionar o valor da banda desenhada europeia (apesar de não apreciar "Tintin", que parece ser a vaca sagrada do género; mas sou fã incondicional de uma certa aldeia de irredutíveis gauleses). O que surpreende, ainda hoje, em "Watchmen" é bem mais do que esse contraste que refere.

Loot, tens razão e isso é uma pena. Sinceramente, coloco "Ghost in the Shell" no mesmo patamar de "Watchmen", "The Sandman" ou "V For Vendetta".

Artur, hei-de explorar isso. Para já, quando regressar ao Alentejo devo pedir emprestado o omnibus de "League of Extraordinary Gentlemen"...

Loot disse...

Exacto há coisas maravilhosas em todos os cantos do mundo :)

Acho muito bem que se destaque a BD europeia, mas isso não quer dizer que a norte-americana não seja igualmente de qualidade.

Quanto ao Tintin e aqui até alargo a muitos deste género, como o Blake & Mortimer. Acho que a maior paixão nasce se leres isto em miúdo. É o público alvo e esses bons sentimentos ficam contigo. Quem pegar nisto adulto, não estou a dizer que não vai gostar, mas se calhar diz-lhe menos. Mas agora para elogiar o Hergé, porque li o Tintin mais tarde (em miúdo tb lia era os gauleses), há que reconhecer que evoluiu muito como autor, a qualidade do Tintin cresce a olhos vistos.

Nunca li o Ghost in The Shell, mas considero o Naoki Urasawa um dos melhores autores de BD da actualidade. Pluto, 20th century boys, Monster. O homem domina :)

Abraço

João Campos disse...

Acho que li "Tintin" em miúdo, ou pelo menos na adolescência. Mas o apetite do Obélix, a astúcia do Astérix e as sessões de pancadaria com os romanos sempre me disseram mais (para além do puro génio da escrita do Goscinny - o diálogo entre o Ideiafix e o cão viking em "A Grande Travessia" é um dos melhores momentos que já encontrei em BD). Talvez volte a pegar no Hergé (salvo seja) um dia destes e veja as pranchas com outros olhos.

Lê "Ghost in the Shell". Sobretudo se já tiveres visto o filme e/ou a série. É de génio como o Masamune Shirow conta uma história tão cyberpunk enquanto desmonta as convenções do género.

Abraço (e bom fim-de-semana)

Loot disse...

Sim o Goscinny foi um dos maiores, mesmo o Lucky Luke, a fase que gosto mais (do que me lembro) foi a escrita por ele :)